Capítulo
de telenovela. Um homem descobre que está muito doente. Sua salvação consiste num
urgente transplante de órgão. Seu único irmão, o doador ideal, sabendo do
drama, imediatamente se apresenta como voluntário; porém, os exames pré-operatórios
revelaram fato desconhecido que deixam todos chocados: eles não são irmãos
biológicos!
O
transplante é abortado, pois geneticamente incompatíveis, o doador e receptor.
O
desfecho do dramalhão fica por conta do leitor. O que importa aqui é o cerne do
roteiro do melodrama, que pode ser usado como paralelo para ilustrar as
diferenças e incompatibilidades existentes entre o crédito que deriva naturalmente
do ICMS, em face do credito derivado de circunstância artificial, criada para
atender situação específica.
O
crédito natural do ICMS é aquele que nasce diretamente da concretização da sua
hipótese de incidência, qual seja: realização de operações (negócio jurídico)
de circulação (mudança de domínio) de mercadorias (bem móvel objeto de
mercancia) e serviços (prestação) de telecomunicações e transporte.
Já
o crédito artificial do ICMS, também conhecido por outorgado ou presumido, nada
tem a ver com o fato gerador do imposto, sendo fruto de uma ficção jurídica que
presume a existência de determinado valor, resultante da aplicação de certo
percentual sobre o valor do ICMS regularmente apurado, usado como parcela a ser
deduzida do imposto devido em condições normais de apuração.
Assim
sendo, o crédito outorgado não resulta da entrada no estabelecimento de
mercadoria ou serviço que sofreu tributação anterior, mas sim de método
artificial de geração de parcelas dedutíveis do ICMS, permitindo que o sujeito
passivo reduza a respectiva carga tributária, apoiado em algum modelo de
benefício ou incentivo fiscal concedido pelo sujeito ativo.
Resumindo:
o crédito outorgado trata-se de concessão de favor estatal de natureza financeira. Já o
crédito natural do ICMS, nascido da consumação de sua hipótese de incidência,
possui natureza tributária.
A
distinção entre as naturezas desses créditos é fundamental para compreensão do
alcance e limitações de cada um, em especial nas hipóteses de transferência
para terceiros.
O
crédito normal do ICMS, em face de sua natureza tributária, submete-se por
completo aos princípios e limitações do poder de tributar, dentre quais
destacamos o princípio da não cumulatividade do ICMS, que, em suma, significa
que esse imposto não será cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação com o montante cobrado nas operações anteriores.
A
transferência do ICMS destacado na operação anterior para o próximo da cadeia
de consumo, que por sua vez o utiliza para compensar o ICMS que será pelo mesmo
devido em futuras operações e prestações, é, ordinariamente, a maneira de dar
efetividade ao princípio da não cumulatividade desse tributo.
O
crédito natural do ICMS pode e deve ser tratado como um ativo da empresa, e,
sendo assim, razoável o direito do proprietário em alienar a terceiros o ICMS
que apropriou por ocasião das compras que efetuou, porém, não compensou por
ocasião das saídas realizadas.
Outrossim,
o mesmo não se pode dizer sobre o crédito outorgado, que acaba desvirtuando e
contaminando o princípio da não cumulatividade quando transferido para compensar
o ICMS devido por terceiros.
O
crédito artificial do ICMS não deve transcender a escrita comercial do
contribuinte tomador do favor fiscal, pois a natureza financeira desse crédito autoriza
apenas que seja deduzido do saldo devedor do ICMS apurado normalmente por seu beneficiário
direto.
Assim,
por patente incompatibilidade, não deve o crédito outorgado dar vazão ao
princípio da não cumulatividade do ICMS, pois esse não se confunde com a
parcela do tributo cobrado nas operações anteriores, requisito fundamental para
que o ICMS apropriado por um contribuinte possa ser transferido e aproveitado
por outro.
A
propósito, a existência de demandas no sentido de transferir créditos
outorgados a terceiros, descortina uma incongruência grave e preocupante: o
exagero na concessão de créditos artificiais do ICMS.
Óbvia
a existência de exageros na concessão créditos outorgados quando os
contribuintes beneficiários chegam ao ponto de não conseguirem consumir toda
a benesse em seu processo produtivo, acumulando-os. Pior ainda, quando esses
contribuintes começam a alienar esses créditos como se fossem parte de seu
processo produtivo
Como
na ilustração da fictícia telenovela, mesmo convivendo como irmãos dentro de um
mesmo contexto, os créditos naturais e artificiais do ICMS diferem-se na
respectiva origem, tornando-os incomunicáveis em determinadas situações.
Ao
contrário do crédito natural do ICMS, que pode ser transferido, misturado e
compensado com débitos de terceiros, o crédito outorgado deve se limitar a
cumprir sua missão financeira, qual seja:
deduzir a parcela do imposto que foi normalmente apurado pelo contribuinte
tomador do benefício.
O
acúmulo do crédito outorgado é uma incongruência, a sua venda uma promiscuidade,
digna de novela barata.