“Introduza um pouco de
anarquia. Perturbe a ordem vigente, e tudo se torna o caos. Eu sou um agente do
caos”. Com essas palavras, o personagem Coringa, em Batman: o Cavaleiro das Trevas,
anuncia seu lema e conclui: “e sabe qual é a chave do caos? O medo”.
Não é fácil, no Brasil atual,
nominar quem é o agente do caos. Não porque não o conheçamos, mas porque são
muitos e difusos, ao menos desde que a não aceitação do resultado das eleições
presidenciais de 2014 “perturbou a ordem vigente”. Desde então, temos muitos
Coringas à solta, espalhando o medo.
A crise econômica brasileira
não dá sinais de esgotamento imediato – agravada por uma ordem política abalada
por sucessivas crises, justamente por conta do caos instalado pela ruptura
democrática do impeachment –, e, enquanto não surge o Batman (um salvador) a
quem recorrer, a alternativa para enfrentar esse caos passa a ser algum ato de
salvação. Para o atual governo, o único ato possível de nos libertar desse caos
é a reforma da Previdência.
Não por acaso, as manchetes da
grande mídia repetem o mantra dogmático de nossa salvação: “Se não for aprovada
a reforma da Previdência, o país quebra”! Essa “bala de prata”, ressaltam, é
nossa única, e derradeira, solução para o caos. Não há alternativas, elas
gritam.
Mas isso é mentira! Há
alternativas viáveis. Mas estas não interessam à nossa velha elite sanguessuga.
Benesses
fiscais × reforma da Previdência: vamos comparar?
O governo escolheu um número
simbólico para “vender” a reforma da Previdência: 1 trilhão de reais. A imagem
é “bonita”: R$ 1.000.000.000.000,00. Essa seria a economia em dez anos. Para um
país com renda média mensal inferior a R$ 1.400, esse é um número assustador (e
inalcançável para a maioria dos brasileiros). Então, para facilitar a
comparação e mostrar as alternativas disponíveis com a “mesma moeda” do
governo, utilizaremos esse número como referência. Essa será nossa “régua”.
O artigo 165 da Constituição
Federal estabelece a obrigação de o Poder Executivo apresentar demonstrativos
das receitas e despesas decorrentes de isenções, anistias, remissões, subsídios
e benefícios de natureza tributária, financeira e creditícia. Proponho usarmos
a denominação benesses fiscais para consolidar a totalidade desses benefícios.
As benesses financeiras,
também denominadas subsídios explícitos (por serem apresentados explicitamente
no orçamento), referem-se a desembolsos efetivos realizados por meio das
equalizações de preços e juros e à assunção de dívidas. As benesses
creditícias, denominadas subsídios implícitos, são os gastos decorrentes de
programas oficiais de crédito, operacionalizados à taxa de juros inferior ao
custo de captação do governo federal. Já as benesses tributárias (ou gastos
tributários, no jargão oficial) são gastos indiretos do governo realizados por
meio do sistema tributário. Além desses, temos as anistias tributárias,
representadas principalmente pelos programas de refinanciamento de dívidas, conhecidos
como Refis.
Há uma percepção geral de que
as benesses fiscais podem ser úteis para alcançar certos objetivos de interesse
público, mas também de que precisam ser utilizadas com equilíbrio, o que traz à
baila algumas questões importantes: quanto custa e quem são os beneficiários
dessa opção política? Qual é o impacto dessas renúncias na economia e nas
contas públicas? É possível reduzi-las?
Tentemos
perscrutar alguns números para buscar as respostas
Em maio de 2018, a Secretaria
de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loteria (Sefel), do Ministério da Fazenda,
divulgou o 2º Orçamento de Subsídios da União: Relatório do Governo Federal,
apresentando os gastos tributários e os benefícios financeiros e creditícios no
período de 2003 a 2017. Os dados mostram que, em 2017, o total de benesses
somente do governo federal (União) alcançou R$ 354,7 bilhões, sendo R$ 84,3
bilhões de benefícios financeiros e creditícios, e R$ 270,4 bilhões de gastos
tributários. Junte-se a elas a perda anual de R$ 18,6 bilhões por ano com os 25
programas de refinanciamento das dívidas com a União que foram criados ou
reabertos no país de 2000 até 2017 e temos o montante anual de benesses
fiscais: R$ 373,3 bilhões.
Utilizando nossa “régua”,
constatamos que a economia pretendida com a draconiana reforma da Previdência
em dez anos é menor do que o total dessas benesses em apenas três anos. Ou,
ainda, para não passarmos a ideia de que é possível acabar com todas essas
benesses, algumas justas, se reduzíssemos em 30% seu montante, teríamos uma
economia equivalente a “uma reforma da Previdência”.
Analisando os dados oficiais,
é possível ver uma tendência de crescimento das benesses da União, que quase
duplicaram: de 3% do PIB em 2003 para 5,4% do PIB em 2017. A desagregação por
modalidade mostra que as benesses tributárias atingiram 4,1% do PIB em 2017,
ante 2% em 2003; e os subsídios financeiros e creditícios se ampliaram de 1% em
2003 para 1,3% do PIB em 2017. Ou seja, se simplesmente retornássemos aos
padrões de 2003, economizaríamos 2,4% do PIB ao ano, ou 24% do PIB em dez anos,
o equivalente a R$ 1,6 trilhão em 2018, um valor 60% superior ao apresentado
pelo governo para “vender” sua reforma da Previdência. Se focássemos somente as
benesses tributárias, seu retorno aos padrões de 2003 já implicariam uma
arrecadação de R$ 1,36 trilhão em dez anos.
Mas por que tal alternativa
nem sequer é cogitada? A quem interessa esse silêncio sobre essa fonte
importante de recursos? Por que apostar numa reforma cuja conta será paga
apenas pelos mais pobres?
Benesses
tributárias: a quem será que se destinam?
A Receita Federal divulgou
recentemente os dados dos gastos tributários em bases efetivas até 2015 e as
projeções até 2020. As projeções para 2018 a 2020 indicam certa estabilidade no
nível dos gastos em cerca de 4,1% do PIB.
Os dados da Receita Federal
mostram ainda que a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
(Cofins) e a Contribuição Previdenciária são os tributos que concentram a maior
parte dessas benesses tributárias: 22% e 21% do total.
Não soa estranho que mais de
50% das benesses tributárias estejam concentradas justamente nos tributos que
financiam a Seguridade Social (Cofins, PIS/Pasep, CSLL e Receitas
Previdenciárias), entre elas a Previdência, acusada de ser a causa de todos os
males? Quem, sendo proponente de ajustes fiscais, defenderia abrir mão de
receitas que justamente tornariam sustentáveis as despesas com saúde,
previdência e assistência?
Não
lhes parece haver algo mal contado nessa história? Quem estaria se beneficiando
dessa omissão?
Para estimar os gastos
tributários, a Receita Federal utiliza um sistema tributário de referência,
segundo ela, “baseado na legislação tributária vigente, em normas contábeis, em
princípios econômicos, em princípios tributários e na doutrina especializada”.
Trata-se, obviamente, de uma escolha discricionária e sujeita às deficiências
dessa subjetividade. Só para ficarmos num exemplo dessa discricionariedade, a
Receita Federal classifica como gasto tributário renúncias relacionadas ao Simples
Nacional, apesar de existir expressa previsão constitucional de tratamento
favorecido para as pequenas e médias empresas (Art. 170, IX). Por outro lado,
não considera que a isenção da distribuição de lucros e dividendos, inserida em
nosso ordenamento jurídico somente em 1996, seja um gasto tributário, embora
configure claramente uma exceção à regra geral da tributação da renda.
Essa é uma questão importante,
pois isso significa que não está incluído no montante das benesses tributárias
o total da renúncia relativa à distribuição de lucros e dividendos, que em
2016, último ano divulgado pela Receita Federal, somaram R$ 269,4 bilhões e, se
fossem tributados identicamente aos rendimentos do trabalho, poderiam resultar
numa arrecadação de mais de R$ 70 bilhões, equivalente, em dez anos, a 70% do
que a reforma da Previdência pretende economizar.
Outra benesse tributária pouco
questionada são as renúncias com a saúde, que se concentram basicamente em
subsídios destinados à oferta (indústria farmacêutica e hospitais) e em gastos
com planos de saúde, profissionais de saúde, clínicas e hospitais. Tais
benesses, que provocaram uma renúncia de R$ 41,3 bilhões em 2019, são de
difícil redução, pois os principais beneficiários são a “classe média”, que
financia seus planos privados, e as operadoras de planos de saúde, as clínicas
e hospitais privados e os profissionais de saúde, que são os destinatários
finais dessa renúncia.
Além disso, as principais
pesquisas na área indicam um efeito negativo dos gastos tributários em saúde
sobre a redução da desigualdade, alguns dos quais com efeitos regressivos, isto
é, que aumentam o nível de desigualdade, pois seu valor se eleva à medida que a
renda das famílias cresce. Como resultado, tais benesses beneficiam os mais
ricos.
Parece óbvio, agora, porque
não se atacam tais benesses em vez de apostarem numa cruel reforma da
Previdência: os gastos tributários favorecem os mais ricos, que exercem grande
poder de influência sobre os que concedem as renúncias tributárias. E os ricos
brasileiros, quando ameaçados em seus castelos, utilizam o medo para instalar o
caos e manter seus privilégios.
E, assim, retomando o Coringa,
quando se instala o medo, é fácil convencer os que vão perder, e sempre
perderam, de que não há alternativas a não ser a supressão de seus direitos.
Nesse “filme”, os que acreditarem no terrorismo do problema da Previdência vão
perceber, talvez tarde demais, que apenas foram usados pelo Coringa e que já
não há “Batmans” para salvá-los.
O que nos resta então?
Precisamos mostrar à sociedade o que está por trás de tudo isso. Quem é o
Coringa. E convencê-la de que não há como debelar o caos senão destruindo “o
agente do caos”, o “nosso” Coringa!
Autor:
Marcelo Lettieri Siqueira – Auditor-Fiscal da Receita Federal
Cláudio, concordo em 90% do que foi dito no texto, porém, quanto à tributação dos lucros e dividendos cabe aqui uma observação de que o Leão não deixa de morder tanto assim, os lucros sobre a valorização das ações são tributados nas vendas mensais acima de R$ 20.000,00, também são tributados os juros sobre o capital próprio que por vezes superam em muito os dividendos, as vendas de fundos como os imobiliários e de ações não tem isenção nenhuma na venda das suas cotas com lucro, além de, em muitos casos, como nas sociedades SCP - por conta de participacao a tributação existente nas empresas administradoras simplesmente deixa de existir quando se transfere a pessoas isentas de IRPF.
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