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quinta-feira, 2 de março de 2017

ESTABELECIMENTO SEM CADASTRO - CRIME TRIBUTÁRIO FORMAL



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NOTA TÉCNICA
N. 001-DRFGNA, de 01 de março de 2017

    









Processo           :  201700004010278 
Interessado    : Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra a Ordem Tributária – DOT.
EMENTA    : MERCADORIA ESTOCADA OU EXPOSTA À VENDA EM ESTABELECIMENTO SEM CADASTRO PERANTE A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. 1. Omissão de obrigação tributária acessória com repercussão penal própria que independe da apuração de possível redução/supressão de tributo. 2. Em tal situação o ICMS lançado de ofício pela autoridade tributária é aferido por presunção/arbitramento, cujo fato gerador é fruto de ficção jurídica, que apesar de autorizado pela lei tributária não possui equivalente penal nos tipos materiais previstos no art. 1º da Lei 8.137/90, à mingua da real ocorrência do fato gerador do tributo em questão. 3. A persecução penal sobre a falta de inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS deve ser interpretada conjuntamente com a existência de mercadorias no recinto do estabelecimento, com o fim de caracterizar a omissão de declaração ao fisco sobre entradas de mercadorias no mesmo 4. A satisfatória declaração de entrada de mercadorias em estabelecimento comercial só pode ser feita por meio de documento fiscal apropriado, especialmente direcionado à inscrição fiscal do contribuinte adquirente; sem a qual a declaração da entrada das mercadorias se torna omissa, possibilitando com isso a futura saída dessas mercadorias com o mesmo vício da omissão. 5. A aquisição e estocagem de mercadorias sujeitas ao ICMS por estabelecimento sem cadastro fiscal se trata de comportamento próprio daqueles que possuem o propósito de se eximir, total ou parcialmente, do pagamento do referido tributo, sujeitando-se por tal ao equivalente penal contido no tipo formal do Inciso I do art. 2º da Lei n. 8.137/90.


  •   FUNDAMENTAÇÃO:

De ordem do titular da DRFGNA e com o fim de dirimir dúvidas da polícia judiciária acerca de procedimentos fiscais tendentes a verificação da regularidade de obrigações tributárias principais e acessórias afetas ao ICMS que possuem repercussão penal, notadamente ao ilícito tributário de manter mercadorias estocadas e/ou expostas à venda em estabelecimento sem cadastro perante a Fazenda Pública estadual, temos a emitir a seguinte nota técnica:
Prefacialmente ao cerne do tema em análise, necessário se faz que fique satisfatoriamente demonstradas as diferenças entre obrigação tributária acessória e principal, bem como o que vem a ser o critério material da regra matriz de incidência tributária do ICMS e a adequada interpretação penal de tal critério.
Nessa senda, a obrigação tributária principal, segundo o Art. 113, § 1º do Código Tributário Nacional, surge com a ocorrência do fato gerador e tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Trata-se de uma obrigação de dar (pagar) tributo ou penalidade pecuniária.
Por sua vez, a obrigação tributária acessória, conforme se extrai da definição inserta no artigo 113, § 2º, do Código Tributário Nacional -  CTN, é entendido como dever instrumental ou formal, que se traduz na obrigação de fazer ou não fazer, exigindo do contribuinte comportamento positivo ou negativo no intuito de viabilizar o controle estatal sobre o regular cumprimento da obrigação tributária principal; ou seja, o recolhimento do tributo devido.
Ressalta-se ainda que o mesmo dispositivo do CTN que trata da obrigação tributária acessória preconiza que essa decorre da "legislação tributária", que na dicção do Art. 96 do mesmo CTN compreende as leis, tratados, decretos e normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e as respectivas relações jurídicas advindas do poder de tributar.
Já a Regra Matriz de Incidência Tributária – RMIT é uma criação doutrinária que faz a análise crítica do fato gerador do tributo e suas consequências jurídicas, que são analisados à luz do que é enunciado nas leis instituidoras do respectivo tributo, pois são nessas normativas que residem os critérios antecedentes e consequentes da RMIT, que se resumem em 5 (cinco) critérios: material, temporal, espacial, pessoal e quantitativo. 
Para o tema em análise o elemento mais notável da RMIT é o critério material do ICMS, que por essência se resume na definição jurídico-tributária do que vem a ser: operação (negócio jurídico), circulação (mudança da propriedade) e mercadoria (bens móveis objeto de mercancia); onde, uma vez ocorrendo no mundo fático a conjugação concomitante desses três elementos, ocorre também o fato gerador do ICMS; que, em regra, vem acompanhado da obrigação principal de pagar o referido tributo.
Assim, para os fins penais, inexequível conceber qualquer resultado material de redução/supressão do ICMS sem que antes ocorra - no seu sentido stricto sensu -, o fato gerador do referido tributo, que na dicção do Art. 155, II da CF/88, consubstancia-se em: “[...] operações relativas à circulação de mercadorias [...]”. (grifamos)
Prefácio posto, adentremos ao cerne da nota requerida.
Conforme mencionado no introito, o que se encontra em exame são as consequências penais quando a autoridade penal se depara com a seguinte hipótese fática: mercadorias estocadas e/ou expostas à venda em estabelecimento sem cadastro perante a Fazenda Pública estadual.
Naturalmente, a análise criminal de tal contexto deve ser precedida da interpretação preliminar da autoridade tributária; que, a rigor, é manifestada através do lançamento do crédito tributário (auto de infração) referente à obrigação principal (ICMS) reduzida/suprimida e/ou da obrigação acessória (penalidade pecuniária) descumprida.
Destarte, primeiramente discorreremos sobre as providências a serem tomadas pela autoridade administrativa tributária quando se defronta com a situação hipotética em análise.
 A obrigação de se cadastrar perante a fazenda pública antes de iniciar qualquer atividade profissional dedicada ao comércio de mercadorias sujeitas ao ICMS se trata de dever instrumental imposto pelo Código Tributário do Estado de Goiás, com grifos nossos, verbis:
Lei n. 11.651/91 - CTE
Art. 152. Os contribuintes do ICMS sujeitam-se à inscrição no Cadastro de Contribuintes do Estado - CCE - e à prestação de informações exigidas pela Administração Tributária.
Art. 153. A inscrição deve ser feita, antes do início das atividades, perante o órgão competente da Secretaria da Fazenda, de acordo com as normas estabelecidas na legislação tributária.
Dúvidas não há que se trata de uma obrigação tributária acessória, cujo descumprimento enseja na imposição de multa formal (pena pecuniária) pela autoridade administrativa, conforme preconiza o mesmo CTE, com grifos nosso, verbis:
Art. 71. Serão aplicadas as seguintes multas:
XV - no valor de R$ R$ 2.652,37 (dois mil seiscentos e cinquenta e dois reais, trinta e dois centavos):
d) por mês de exercício de atividade, ou fração de mês, pela falta de inscrição no Cadastro de Contribuintes do Estado ou pelo funcionamento estando com o cadastro suspenso, paralisado temporariamente, cassado ou baixado;
 Importante frisar que a multa formal pela falta do cadastro estadual só pode prosperar se tal circunstância estiver acompanhada da existência de mercadorias sob o domínio do estabelecimento fixo ou móvel; pois, caso constatado estabelecimento desprovido de bens móveis destinados à mercancia (mercadorias), não há de se falar em descumprimento de obrigação principal ou acessória relativa ao ICMS, à mingua de outro fato ou elemento que demonstre com razoabilidade a omissão de tais obrigações pelo estabelecimento objeto da vistoria fiscal.
Uma vez constatado o estoque ou exposição à venda de mercadorias sujeitas ao ICMS em estabelecimento sem cadastro fiscal, a legislação tributária reserva a seguinte providência em relação ao pagamento do tributo, com grifos nossos, verbis:
Lei n. 11.651/91 – CTE:
Art. 14. Considera-se, também, ocorrido o fato gerador do imposto, no momento:
[...]
V - da verificação da existência de estabelecimento de contribuinte, não inscrito no cadastro estadual ou em situação cadastral irregular, em relação ao estoque de mercadorias nele encontrado;
[...]
Art. 19. Nas seguintes situações específicas, a base de cálculo do imposto é:
[...]
VIII - o preço corrente da mercadoria no mercado atacadista, acrescido do valor resultante da aplicação de percentual de lucro bruto fixado segundo o disposto em regulamento:
[.,..]
c) nas operações com mercadorias destinadas a contribuintes não inscritos no cadastro estadual ou em situação cadastral irregular;
Consentâneo destacar que o lançamento do ICMS na hipótese em questão é autorizado por ficção jurídica que por presunção CONSIDERA OCORRIDO o fato gerador do referido tributo; pois, stricto sensu, o reclamado fato gerador não ocorreu na forma litúrgica do termo; em razão de o simples depósito de mercadorias em estabelecimento sem cadastro fiscal não configurar fato gerador de obrigação tributária principal na forma estabelecida pela Regra Matriz de Incidência do ICMS, que para tal exige a ocorrência simultânea dos termos: operação, circulação e mercadorias.
Por estar a autoridade tributária vinculada à lei, o lançamento é efetuado na forma prevista na legislação; restando, pois, a apuração de possível repercussão penal ante o fato constatado.
Nesse caminho, conforme demonstrado na situação hipotética em análise, o mesmo fato ensejou em duas autuações, um referente à multa formal pela não inscrição prévia no cadastro de contribuintes do Estado e outro pelo ICMS suprimido (presumidamente) em relação ao estoque existente em estabelecimento sem cadastro.
Não obstante haver previsão legal de lançamento do ICMS nesse sentido, o que induz possível resultado material de sonegação fiscal, o simples lançamento do tributo não determina a incidência dos tipos penais do Art. 1º da n. Lei 8.137/90; embora o lançamento tributário constitua condição objetiva de punibilidade (Lei nº 9.430/96, art. 83).
Isso porque – repisamos - no caso hipotético em análise não houve o efetivo fato gerador do tributo, consubstanciado na ocorrência simultânea dos elementos: operação, circulação e mercadoria; sendo identificado apenas o elemento “mercadoria”; à mingua de constatação de negócio jurídico de venda (operação) que transmite a propriedade das mercadorias encontradas (circulação).
Dessa forma, não há como considerar possível crime material de redução/supressão de tributos, já que a origem do lançamento advém de fato gerador ficto, não sendo a presunção de sonegação (material) suficiente para repercutir no campo penal.
 Impraticável, do ponto de vista penal, reduzir ou suprimir o ICMS sem a efetiva ocorrência de todos os elementos previstos no art. 155, II da CF/88 para a hipótese de incidência do Referido tributo.
Nesse sentido o Colendo STJ, com grifos nossos:
HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. EXPOSIÇÃO DE MERCADORIAS À VENDA SEM A EMISSÃO DA NOTA FISCAL DE TRÂNSITO. ATOS TENDENTES À SUPRESSÃO DE TRIBUTO. ART. 2o., I DA LEI 8.137/90. AUSÊNCIA DE EFETIVA VENDA DA MERCADORIA (FATO GERADOR DO ICMS). NÃO CONFIGURAÇÃO DO DELITO DO ART. 1o., V DA LEI 8.137/90 QUE DEPENDE DA OCORRÊNCIA DE EFETIVO PREJUÍZO À FAZENDA PÚBLICA. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DO WRIT. ORDEM CONCEDIDA PARA DETERMINAR A REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.1.   O STJ possui o entendimento no sentido de que para a configuração do delito tipificado no art. 1o., V da Lei 8.137/90 é necessária a efetiva venda da mercadoria ou prestação do serviço (fato gerador do ICMS), isso porque é crime material, dependendo da ocorrência de prejuízo para o Estado, consistente na supressão ou redução do tributo. 2.  No caso, a paciente apenas expôs a mercadoria à venda sem a emissão da nota fiscal de trânsito, conduta tipificada, em tese, no art. 2o., I da Lei 8.137/90 (atos preparatórios da sonegação), porquanto não houve a efetiva venda da mercadoria (fato gerador do tributo). 3.   A inscrição do débito na dívida ativa, conquanto seja condição objetiva de punibilidade (art. 83 da Lei 9.430/96), não altera a tipificação da conduta da paciente, mormente quando evidenciado que a ré não praticou sequer o fato gerador do tributo, como in casu. Precedentes do STJ. 4.   Ordem concedida, em conformidade com o parecer ministerial, para determinar a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal para a apuração do suposto delito tipificado no art. 2o., I da Lei 8.137/90. (HC 174.120/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 25/11/2010, DJe 13/12/2010)
Ainda na senda do supratranscrito acordão, no concernente ao elemento subjetivo especial, consistente na omissão de se inscrever no cadastro de contribuintes antes de iniciar a atividade profissional de venda de mercadorias sujeitas ao ICMS, não há maiores dificuldades em extrair desse ato a dolosa intenção de: “eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
É que ao circular mercadorias sujeitas ao ICMS sem prévio cadastro fiscal, o contribuinte irregular acaba por não declarar ao fisco a aquisição dessas mercadorias para revenda, que só pode ser feita por meio de documento e livros fiscais especialmente direcionados à inscrição fiscal do contribuinte; que por sua vez, não pode emitir o documento fiscal de uma futura venda em razão da mesma falta de cadastro no órgão fazendário, deixando de escriturar e declarar as saídas dessas mesmas mercadorias, e por consequência eximindo-se do pagamento do tributo que seria apurado em razão dessas operações.
Por óbvio, a ignorância da fazenda pública em relação a existência informal de contribuinte que se dedica a atividade de comercialização de mercadorias, faz com que a Administração Tributária não tenha como identificar com a mínima razoabilidade, possível supressão tributária advinda de tal atividade.
Assim, a pessoa que desenvolve atividade comercial de forma irregular, sem cadastro fiscal, e por consequência sem escriturar notas de entrada em livro fiscal, sem emitir e escriturar notas fiscais de venda, e sem declarar ao fisco pelos meios eletrônicos próprios os fatos geradores e os respectivos e tributos devidos; obviamente, exime-se do pagamento dos tributos.
Portanto o contexto da hipótese fática posta em análise demonstra claramente que o exercício de atividade comercial sem o devido cadastro fiscal, torna manifesta a intenção de eximir-se totalmente do pagamento do tributo devido, caracterizando, portanto, o elemento subjetivo especial do tipo contido no Art. 2º, I da Lei n. 8.137/90.

  •  CONCLUSÃO:

Finalizando a presente nota técnica, em relação a repercussão penal da conduta de: manter mercadorias estocadas e/ou expostas à venda em estabelecimento sem cadastro perante a Fazenda Pública estadual; consignamos aos agentes da polícia judiciária, salvo o seu melhor entendimento, o seguinte:
1. Trata-se de omissão de obrigação tributária acessória com repercussão penal própria que independe da apuração de possível redução/supressão de tributo;
2.  Em tal situação o ICMS lançado de ofício pela autoridade tributária é aferido por presunção/arbitramento, cujo fato gerador é fruto de ficção jurídica, que apesar de autorizado pela lei tributária não possui equivalente penal nos tipos materiais previstos no art. 1º da Lei 8.137/90, à mingua da real ocorrência do fato gerador do tributo em questão;
3. A persecução penal sobre a falta de inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS deve ser interpretada conjuntamente com a existência de mercadorias no recinto do estabelecimento, com o fim de caracterizar a omissão de declaração ao fisco sobre entradas de mercadorias no mesmo;
4. A satisfatória declaração de entrada de mercadorias em estabelecimento comercial só pode ser feita por meio de documento fiscal apropriado, especialmente direcionado à inscrição fiscal do contribuinte adquirente; sem a qual a declaração da entrada das mercadorias se torna omissa, possibilitando com isso a futura saída dessas mercadorias com o mesmo vício da omissão.
5. A aquisição e estocagem de mercadorias sujeitas ao ICMS por estabelecimento sem cadastro fiscal se trata de comportamento próprio daqueles que possuem o propósito de se eximir, total ou parcialmente, do pagamento do referido tributo, sujeitando-se por tal ao equivalente penal contido no tipo formal do Inciso I do art. 2º da Lei n. 8.137/90.
DRFGNA, 01/03/2017



quarta-feira, 1 de março de 2017

ICMS DECLARADO E NÃO PAGO - CRIME TRIBUTÁRIO FORMAL







ANÁLISE DE CASO CONCRETO
TJ/GO - APELAÇÃO CRIMINAL 294545-55.2007.8.09.0051
DJe 1494 de 27/02/2014




Cláudio César Santa Cruz Modesto 


1.        INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo tecer sucinta análise crítica à decisão proferida pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás na Apelação Criminal n. 294545-55.2007.8.09.0051, cujo acórdão foi assim ementado, a saber:

APELAÇÕES CRIMINAIS. RECURSOS DA ACUSAÇÃO E DO RÉU. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, II, DA LEI 8.137/90. ICMS PRÓPRIO REGULARMENTE DECLARADO AO FISCO. NÃO RECOLHIMENTO NO PRAZO LEGAL. MERO INADIMPLEMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO. A conduta delituosa positivada no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, exige para sua configuração o não recolhimento de tributo “descontado” ou “cobrado”. Relativamente ao ICMS, apenas o substituto tributário pode descontar ou cobrar o imposto do real contribuinte substituído, apropriando-se de valores na qualidade de depositário para o ordinário repasse ao Fisco. Diferente ocorre quando se trata de ICMS devido pelo próprio contribuinte em relação a circulação de suas mercadorias. Nesse caso, o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o ônus, assim como também é repassado todos os dispêndios do custo operacional da bem, a exemplo da folha de salários, insumos, matéria-prima, etc. No âmbito do direito civil, só se pode cobrar de quem deve o que está sendo cobrado. O consumidor final não detém qualquer vínculo ou relação jurídico-tributária com o Fisco, portanto, não lhe pode ser cobrado o tributo. Sendo o ICMS próprio regular e contabilmente lançados nos livros fiscais da empresa contribuinte, bem como declarado à Fazenda, sem contudo, haver o ordinário recolhimento dos valores, a omissão não ultrapassa o mero inadimplemento, passível de persecução no procedimento cível da execução fiscal. Ausência de injusto penal. Denúncia que descreve fato atípico. Absolvição. APELAÇÕES CRIMINAIS CONHECIDAS. DESPROVIDA A PRIMEIRA APELAÇÃO E PROVIDA A SEGUNDA.
(TJGO, APELACAO CRIMINAL 294545-55.2007.8.09.0051, Rel. DES. JOAO WALDECK FELIX DE SOUSA, 2A CAMARA CRIMINAL, julgado em 13/02/2014, DJe 1494 de 27/02/2014)

Extrai-se da ementa supratranscrita que o douto relator firmou entendimento pela atipicidade da conduta prevista no Art. 2º, II da Lei 8.137/90[1], cujas principais razões são assentes na conclusão de que o tributo objeto da conduta, o ICMS, para que sua supressão configure o tipo penal em tela, necessitaria que o seu não recolhimento fosse precedido de valor efetivamente “descontado” ou “cobrado” de terceiro.
Entendeu o eminente relator que no caso concreto o ICMS é devido pelo próprio contribuinte em relação à circulação de suas mercadorias; e, no caso, o empresário não cobrou do consumidor final o valor do tributo (ICMS) embutido no preço do produto, apenas lhe transferiu o ônus.
Continua com a conclusão de que o consumidor final não possui qualquer relação jurídico-tributária com o fisco; e, por tal, não pode desse ser cobrado o ICMS, o que só ocorreria em caso de a exação se encontrar sujeita ao regime de Substituição Tributária.
Finaliza que o caso é de mero inadimplemento, passível apenas de persecução na esfera civil através dos procedimentos e instrumentos disponibilizados à Fazenda Pública na execução de seus créditos.

2.           DA CRÍTICA
Apesar de, em principio, os fundamentos lançados pelo eminente relator possuírem lastro na lei, doutrina e jurisprudência; entendemos que foram lançados em um contexto equivocado, em especial por se fundar em aspectos jurídico-tributários que envolvem o ICMS; sem, contudo, levar em consideração circunstâncias, características e fatos fundamentais para a compreensão do caso concreto.
As omissões verificadas na construção do voto do eminente relator, que entendemos serem as responsáveis pelo equivocado entendimento, têm por mais patente a desconsideração da natureza indireta do tributo ICMS. Desprezou-se também a sua característica patrimonial, o que acabou por mitigar o princípio da não-cumulatividade nas operações que envolvem o referido tributo.
Consentâneo apontar de inicio a primeira falha verificada na construção do voto vencedor (erro de fato), quando da análise do caso concreto, que mesmo se mostrando sutil, entendemos ter contribuído muito para a sucessão de equívocos operados em seguida.
Em seu eminente voto o ilustre relator foi taxativo: “O comerciante varejista de um produto X tem como escopo vendê-lo ao consumidor final, daí auferindo lucro da atividade [...] Portanto, dúvidas não há, o comerciante varejista acima é contribuinte do ICMS”. (grifamos)
Na lavratura do acórdão assim resume tal entendimento: “Nesse caso, o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o ônus”. (grifamos)
Após transcrição dos trechos do venerando voto e acórdão, é nítida a confusão feita pelo eminente relator ao atribuir à atividade empresária que o réu administrava a do ramo varejista, e aos seus respectivos clientes a pecha de mero consumidor final.
È notório o fato de a sociedade empresária administrada pelo réu (EMEGE) se tratar de uma grande indústria alimentícia predominando em sua carteira de clientes grandes atacadistas e supermercadistas; razões que excluem esses últimos da acepção jurídica do termo consumidor final dos produtos vendidos pela primeira, e, desta, a condição de varejista.
Tal fato, per si, joga por terra o entendimento que a conduta praticada no comando da sociedade empresária exercida pelo réu não pode ser tipificada porque não houve cobrança do ICMS na operação de venda, já que os ditos “consumidores finais” não possuem relação jurídico-tributária no fato gerador.
Se analisarmos o caso concreto como realmente se deve, logo perceberemos que as relações jurídico-tributárias envolvidas nas operações mercantis da EMEGE com seus clientes, em relação ao ICMS, são evidentes.
Para ilustrar tal relação conjecturamos a cadeia de industrialização e comércio contida nas tabelas que se seguem, utilizando alíquotas de ICMS e de IVA fixos, em 10% e 100% respectivamente, referente a industrialização a comercialização de macarrão (produto principal da indústria administrada pelo réu). Observe:

  
Ora, atendendo o princípio da não comutatividade e o da natureza indireta do ICMS; e, ainda, em respeito ao preceito contido na LC nº. 87/96, que estipula que o montante do próprio imposto integra a sua base de cálculo, constituindo o seu destaque no documento fiscal “mera indicação para fins de controle”, a ciência contábil atribuiu característica iminentemente patrimonialista ao ICMS.
Tanto é que reservou no ativo circulante conta gráfica específica para o ICMS a recuperar. Observe que na escrituração das operações mercantis o valor egresso do caixa (disponível) para pagamento da mercadoria é exatamente o valor da operação (100%), porém na escrituração dessa mesma operação as mercadorias são contabilizadas excluindo-se o ICMS cobrado no negócio jurídico, que fica reservado para futuras compensações.
Fácil então inferir a lógica do tributo indireto e não cumulativo: o ICMS pago pelo produtor é cobrado do industrial, que por sua vez, cobra do atacadista seu ICMS NORMAL, mais o ICMS que pagou ao produtor rural, repassando ao atacadista o montante do ICMS até então envolvido nas operações anteriores; que por sua vez cobra do varejista o seu ICMS NORMAL, mais o do produtor, mais o do industrial, repassando ao varejista o montante do ICMS até então envolvido nas operações anteriores; que por sua vez finaliza o ciclo cobrando do consumidor final o seu ICMS NORMAL juntamente com todo o montante do imposto envolvido até então nas operações anteriores.
Verifica-se assim que ao contribuinte de fato não é dada a oportunidade de não ser cobrado pelo ICMS nas operações anteriores, restando a esse suportar o ônus do referido tributo, e, dependendo de sua posição na cadeia da produção, comercialização e consumo, compensá-lo nas operações futuras.
Ressalta-se que quando o recolhimento do ICMS NORMAL não é efetuado por um dos envolvidos nessa cadeia, o crédito por ele destacado em sua nota fiscal, apurado e não pago, será normalmente aproveitado e compensado pelo próximo sujeito da cadeia empresarial, que afinal foi efetivamente cobrado por tal tributo, tanto é que o contabilizou separadamente em conta específica do seu ativo, como faz com qualquer bem ou direito.
Daí ser evidente que muito além da mera repercussão econômica como ocorre com os tributos diretos, onde o empresário repassa os custos do encargo para o preço da mercadoria, há verdadeiramente uma relação evidenciada pela relação jurídico-tributária entre contribuinte de fato e direito, característica do tributo indireto.
Tal entendimento tem o alicerce dos ensinamentos de Ricardo Alexandre (2011, p. 106) que discorrendo sobre o Imposto de Renda, tributo iminentemente DIRETO, assim lecionou, com grifos nossos:

Há a repercussão econômica do tributo, mas não o que se poderia chamar de repercussão jurídica, somente verificada nos casos em que há previsão normativa da oficial transferência do encargo. O tributo (IR) é considerado direto.
Os economistas, baseados na indiscutível tese de que praticamente todo tributo tem a possibilidade de ter seu encargo econômico repassado para o consumidor de bens e serviços afirmam que a classificação dos tributos como diretos ou indiretos e irrelevante. Não obstante tal entendimento, existe uma profunda relevância jurídica na classificação quando se comparam as regras relativas a restituição de tributo direto com aquelas referentes aos tributos indiretos. Ademais, a inaplicabilidade de critérios econômicos para qualificação de um tributo como direto ou indireto e ponto pacífico da Jurisprudência do STJ (REsp 118.488).

Desta feita, a relação jurídico-tributária entre contribuintes de fato e de direito é intrínseco às operações que envolvem o tributo indireto. 
No mesmo sentido, Sabbag (2011, p. 164), leciona sobre o tema o seguinte:
[...] os chamados impostos indiretos, ou seja, tributos que comportam, por sua natureza, a transferência do respectivo encargo financeiro, conforme dispõe o art. 166 do CTN. Trata-se de gravames marcados pela repercussão tributária, isto é, pela transferência do encargo tributário do realizador do fato jurídico-tributário para o consumidor final, adquirente do bem.

Ilustramos ainda o entendimento desposado pelo STJ nos primórdios da discussão sobre tributos diretos e indiretos, com grifos nossos:

TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ICMS. TRIBUTO INDIRETO. TRANSFERÊNCIA DE ENCARGO FINANCEIRO AO CONSUMIDOR FINAL. ART. 166, DO CTN. ILEGITIMIDADE ATIVA. 1. ICMS é de natureza indireta, porquanto o contribuinte real é o consumidor da mercadoria objeto da operação (contribuinte de fato) e a empresa (contribuinte de direito) repassa, no preço da mesma, o imposto devido, recolhendo, após, aos cofres públicos o tributo já pago pelo consumidor de seus produtos. Não assumindo, portanto, a carga tributária resultante dessa incidência. 2. Ilegitimidade ativa da empresa em ver restituída a majoração de tributo que não a onerou, por não haver comprovação de que a contribuinte assumiu o encargo sem repasse no preço da mercadoria, como exigido no artigo 166 do Código Tributário Nacional. Prova da repercussão. Precedentes. 3. Ausência de motivos suficientes para a modificação do julgado. Manutenção da decisão agravada. 4. Agravo Regimental desprovido. AgRg no REsp 440.300/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/11/2002, DJ 09/12/2002, p. 302)

Por fim, para os que entendem que não existem palavras inúteis na lei, a redação dos incisos, parágrafos e alíneas que se seguem ao Art. 155 da Constituição Federal, não deixam dúvidas de que o ICMS é cobrado nas operações anteriores, com grifos nossos, verbis:

Art. 155. [...]

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

[...]

X - não incidirá:

a) sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)


3.                 CONCLUSÃO:
Pelo exposto, diante toda evidência fática e jurídica de que o ICMS é cobrado do sujeito passivo que adquire bens para uso, consumo, transformação ou revenda; não só por se tratar de um tributo indireto, mas no caso concreto pela simples, mas cabal demonstração do tratamento contábil dispensado ao mesmo, cuja respectiva ciência o separa e o classifica como um direito da entidade com registro no ativo circulante, não há como concordar com a conclusão assentada no r. e criticado acórdão.
Nesse se constata que o seu ilustre relator durante todo o seu voto tratou o ICMS como um tributo de repercussão DIRETA, o que, por óbvio, acabou por conduzir seu voto ao equivoco de que: “o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o ônus, assim como também é repassado todos os dispêndios do custo operacional da bem, a exemplo da folha de salários, insumos, matéria-prima, etc”.
Nessa senda, entendemos que a conduta de deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos, trata-se de conduta típica, que só pode ser ilidida mediante a ausência de dolo, elemento subjetivo essencial ao tipo.


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BIBLIOGRAFIA:
 ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado - 5. ad. - Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.
 SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário – 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.


 [1] [... deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos...]