A recente Portaria n.º 630/2024, publicada pelo Estado de Goiás, aliada à Lei Complementar n.º 197/2024, traz significativa mudança na forma de cobrança de créditos tributários. Por meio do programa “Quita Goiás” e de outros mecanismos de conciliação extrajudicial, o Poder Público goiano fixou em R$ 500 mil o valor mínimo para instauração de execuções fiscais.
Embora a proposta seja louvável ao buscar maior eficiência na arrecadação e reduzir a litigiosidade no Judiciário, ela pode gerar um grave efeito colateral na esfera penal tributária: a atipicidade (ou ausência de relevância penal) para condutas de sonegação abaixo de tal montante.
O problema se instaura quando analisamos as consequências penais do novo teto mínimo de cobrança. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido, de forma reiterada, que a aplicação do princípio da insignificância pode ser justificada em crimes tributários estaduais, desde que exista norma local que estabeleça determinado valor mínimo para a execução fiscal. Em outras palavras, quando o próprio ente federativo reconhece a irrelevância econômica do crédito tributário para fins de cobrança judicial, isso pode repercutir na esfera penal, configurando ausência de tipicidade material.
Dessa forma, condutas de sonegação abaixo do valor de R$ 500 mil podem ser consideradas atípicas em território goiano. Esse entendimento se apoia no raciocínio de que, se o Estado não considera vantajoso ou relevante economicamente perseguir judicialmente determinado débito fiscal, não haveria por que a esfera penal tutelar algo tido como “insignificante” para os cofres públicos.
A consequência prática dessa compreensão jurídica é preocupante. Se a Portaria 630/2024 considera “insignificantes” todas as dívidas fiscais abaixo de R$ 500 mil, isso pode levar à extinção de milhares de processos criminais envolvendo valores inferiores a esse montante, sob o argumento de ausência de relevância penal.
Além disso, as organizações criminosas especializadas em fraudes tributárias não terão dificuldades em estruturar, de forma sistemática, operações de sonegação envolvendo pequenos montantes que, somados, geram grandes perdas ao erário, mas que permaneceriam formalmente “menores que o teto”.
O programa “Quita Goiás”, ao fixar um piso de R$ 500 mil para a cobrança judicial, sugere um modelo de gestão fiscal mais racional. Entretanto, na seara criminal, a nova política gera o risco de esvaziar a importância penal de condutas de sonegação fiscal abaixo desse patamar, liquidando persecuções penais em curso e criando um “incentivo” perverso à sonegação contumaz.
A busca pela redução de litígios não pode resultar no enfraquecimento dos mecanismos de repressão a crimes tributários e a organizações criminosas especializadas em fraudes estruturadas. Afinal, dificilmente o programa "Quita Goiás" receberá a adesão de uma empresa "noteira", ainda mais sem o perigo de repressão penal.
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