lista

  • Por que protegemos um sistema que nos fere?

Páginas

terça-feira, 17 de junho de 2025

Austeridade seletiva: quando a Constituição vale para uns, mas não para outros

A atuação da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás (PGE-GO) expõe uma preocupante distorção do papel institucional que se espera de um órgão público que se apresenta como defensor da legalidade.

A ADPF 1230, levada ao Supremo Tribunal Federal pelo governador de Goiás, com o patrocínio da PGE e o aval da Assembleia Legislativa, busca anular decisões judiciais definitivas que garantiram a revisão geral anual (RGA) prevista no artigo 37, inciso X, da Constituição, a servidores públicos goianos de diferentes categorias. Cerca de 20 mil, calcula-se.

O movimento é considerado sem precedentes e levanta alertas sobre riscos à segurança jurídica e ao princípio da coisa julgada — fundamentos essenciais do Estado Democrático de Direito. A tentativa de reverter sentenças transitadas em julgado ameaça transformar decisões da Justiça em meras peças sujeitas a pressões políticas e ajustes de caixa.

Enquanto move céus e terras para desfazer decisões judiciais transitadas em julgado favoráveis a servidores públicos, a mesma Procuradoria se mostra seletivamente omissa diante de outra questão de alta relevância jurídica: a continuidade da gestão dos honorários advocatícios por uma associação privada de procuradores.

Nesse arranjo, cabe à associação — e não ao Estado — realizar o chamado “corte” do teto constitucional. Na prática, valores que ultrapassam o limite remuneratório, e que deveriam ser devolvidos aos cofres públicos, jamais retornaram. O procedimento, além de carecer de transparência, contraria precedentes do Supremo Tribunal Federal e põe em xeque o controle e a legalidade na administração de recursos públicos.

Esse modelo de gestão dos honorários já foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal em casos semelhantes nos estados do Ceará (ADI 6170), do Distrito Federal (ADI 6168 - ED) e de Rondônia (ARE 1.476.224). As decisões da Corte são categóricas: o repasse e a administração de verbas públicas — como os honorários de sucumbência — por entidades privadas, violam frontalmente os princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade que regem a administração pública.

Ainda assim, o modelo persiste em Goiás, amparado por um silêncio institucional que beira a conivência.

O que se desenha, portanto, é um cenário de profunda incoerência institucional. De um lado, a Procuradoria mobiliza o Supremo Tribunal Federal para tentar reverter direitos já reconhecidos a milhares de servidores, inclusive em ações com execução em curso ou já quitadas. De outro, mantém-se silente diante de um modelo de remuneração que beneficia diretamente seus próprios membros, mesmo em flagrante afronta à Constituição.

Essa seletividade na aplicação da Constituição precisa ser revertida. Não é aceitável que se invoque o texto constitucional para cortar direitos dos servidores, enquanto ignora-se a mesma força do texto quando impõe limites à própria elite burocrática do Estado. 

A jurisprudência do STF é inequívoca: procuradores podem receber honorários, desde que respeitado o teto constitucional e vedada a gestão privada desses recursos. O pagamento dessa verba remuneratória não pode ocorrer à margem do controle estatal, sem transparência nem fiscalização. Manter esse arranjo é chancelar uma captura institucional que subverte o interesse público em nome de benefícios corporativos.

Nesse contexto, a postura da PGE-GO compromete não apenas a consistência de seus argumentos perante o STF, mas também sua credibilidade perante a sociedade. Ao investir contra sentenças legítimas que beneficiam servidores e, ao mesmo tempo, silenciar diante de irregularidades internas que favorecem seus próprios membros, a instituição deixa de representar a legalidade para encarnar uma legalidade de conveniência — moldada aos interesses de quem a interpreta. A retórica da “sustentabilidade da dívida pública” se revela, assim, uma mera cortina de fumaça para justificar uma austeridade seletiva, que poupa privilégios enquanto sacrifica direitos.

A sociedade precisa estar vigilante, e os servidores, unidos. Porque o que está em jogo vai além de uma disputa judicial: trata-se do modelo de Estado que se deseja construir, em que a Constituição valha para todos, e não apenas para alguns.

Afinal, ADPF no direito alheio é refresco.


segunda-feira, 12 de maio de 2025

10%: O Preço da Não Execução

Uma Ação Civil Pública (ACP) foi ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP/GO) em face da Portaria nº 630-GAB/2024, da Procuradoria-Geral do Estado, a qual estabelece novo limite mínimo de R$ 500 mil para o ajuizamento de execuções fiscais, substituindo o patamar anterior fixado pela Lei Estadual nº 16.077/2007, significativamente inferior.

O MP sustenta que a referida portaria contraria o princípio da legalidade estrita, especialmente em matéria tributária, e afronta o arcabouço normativo vigente, com potencial prejuízo ao erário estadual e efeitos colaterais relevantes na aplicação da lei penal.

Uma das preocupações do MP, com razão, é a possibilidade de incidência indevida do princípio penal da insignificância, uma vez que, conforme argumenta, “não seria razoável que o Estado ajuizasse uma ação penal se não se dá ao trabalho de propor a correspondente execução fiscal.”

Entretanto, dois aspectos graves e substanciais não foram devidamente explorados na ACP, merecendo destaque e aprofundamento.

O primeiro aspecto reside na interferência direta da norma infralegal estadual sobre o regime da prescrição penal aplicável aos crimes tributários materiais previstos na Lei nº 8.137/90. Ao deliberadamente abdicar da cobrança judicial de tributos constituídos, a portaria antecipa os efeitos extintivos da punibilidade, convertendo, na prática, um prazo prescricional penal que varia de 8 a 12 anos (art. 109 do Código Penal) em um período de apenas 5 anos, prazo este previsto para a prescrição tributária no art. 174 do CTN.

É importante destacar que, ao contrário da prescrição civil, a prescrição tributária não afeta apenas a pretensão de cobrança, mas extingue o próprio crédito tributário (CTN, art. 156, inciso V). Assim, a inércia no ajuizamento da execução fiscal, motivada por ato infralegal estadual, não só compromete a arrecadação, como torna inviável a persecução penal, pois o crédito extinguido faz desaparecer a conduta penalmente tipificada, que depende da existência jurídica do crédito omitido ou suprimido.

Este ponto evidencia uma usurpação de competência privativa da União, uma vez que a disciplina sobre prazos de prescrição penal é matéria de direito penal, regida por norma federal (CF, art. 22, I). A portaria, portanto, produz reflexos que extrapolam sua competência material e normativa, violando a repartição constitucional de competências.

O segundo ponto omitido no debate judicial refere-se ao modelo de incentivo institucional criado pela própria PGE em outra norma infralegal — a Portaria nº 55-GAB/PGE/2025, que autoriza a incidência de honorários advocatícios já na fase de cobrança administrativa.

Tal previsão rompe com a lógica tradicional, na qual os honorários só são devidos após a constituição de litígio judicial. Agora, o contribuinte que regularizar seu débito administrativamente, muitas vezes procurando a repartição fiscal espontaneamente, passa a arcar com um acréscimo de 10%, valor que anteriormente só existiria no contexto de uma demanda judicial.

A contradição é evidente: a alegada eficiência e economicidade da via administrativa é utilizada como argumento para justificar a dispensa da execução fiscal, mas, ao mesmo tempo, onera o contribuinte com encargos típicos da fase judicial, criando uma “remuneração por fora” da litigiosidade. Na prática, trata-se de um desvio de finalidade: o novo modelo de cobrança foi  estruturado não para servir ao interesse público arrecadatório, mas como instrumento de incentivo remuneratório para os membros da própria instituição que o criou.

Essa lógica subverte os princípios da legalidade, moralidade e economicidade administrativa, gerando um evidente conflito de interesses. A decisão de não ajuizar a execução fiscal deixa de ser orientada por critérios técnicos e passa a ser influenciada pelo retorno financeiro direto, rápido e garantido aos agentes públicos envolvidos. Nessa perspectiva, a cobrança administrativa de créditos tributários deixa de refletir o interesse público e passa a ser conduzida conforme critérios de conveniência e oportunidade de uma categoria funcional específica, em prejuízo da função arrecadatória do Estado. 

Os argumentos apresentados pela PGE em defesa do modelo revelam-se meramente aparentes. Basta suprimir o componente remuneratório — os 10% de honorários advocatícios na via administrativa — para que toda a retórica de “eficiência”, “modernidade” e “redução de custos” desmorone. Sem o incentivo financeiro, a suposta nova lógica de cobrança se esvazia, e o sistema retornará, por inércia, ao modo tradicional — não por questões técnicas ou jurídicas, mas pela simples falta de interesse da PGE em mantê-lo sem o retorno financeiro aos seus membros.

A Portaria nº 630-GAB/2024 não é apenas uma opção administrativa de gestão fiscal. Ela altera substancialmente o regime jurídico da cobrança tributária e compromete a higidez do sistema penal e arrecadatório, extrapolando os limites de sua legalidade formal e material. Associada à Portaria nº 55-GAB/PGE/2025, a medida revela-se como um mecanismo estratégico de monetização interna, com nítido viés corporativista, cuja manutenção compromete o controle legítimo da cobrança de créditos tributários e distorce a lógica da repressão penal tributária, ao esvaziar deliberadamente a efetividade da persecução criminal.

A sistemática de cobrança atualmente em vigor materializa um verdadeiro paradoxo institucional: sacrifica-se o crédito tributário para assegurar o triunfo dos honorários. Instaura-se, assim, um mecanismo que transforma a prescrição do crédito em oportunidade de ganho, subvertendo o interesse público. Trata-se de uma lógica que, ao contrário do que proclamam seus formuladores, inverte os princípios da eficiência, da economicidade e da moralidade administrativa.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Direito à informação prevalece: Tribunal determina acesso integral do SINDIFISCO ao SEI da Portaria 393

 

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), por decisão unânime da 9ª Câmara Cível, concedeu a segurança em favor do SINDIFISCO/GO, reconhecendo o direito líquido e certo do sindicato ao acesso integral ao processo administrativo SEI nº 202400004089108, que tratou da edição e posterior revogação da Portaria nº 393/2024, da Secretaria da Economia.

O sindicato impetrou mandado de segurança após ter sido negado o acesso ao conteúdo do referido processo administrativo, que originou a Portaria nº 393/2024 — publicada e revogada no mesmo mês. O acesso ao processo é essencial para compreender os motivos, os fundamentos técnicos ou políticos e os responsáveis diretos pela edição da referida norma.

A Portaria instituía um grupo de trabalho para propor um programa de conformidade e integridade direcionado aos auditores fiscais, com potencial impacto funcional direto sobre a categoria, inclusive com a absurda previsão de implementação de um canal de denúncias anônimas contra os próprios auditores.

A negativa da Secretaria da Economia baseou-se em uma alegação genérica de que os documentos seriam “preparatórios”. Todavia, a Relatora, Desembargadora Camila Nina Erbetta Nascimento, afastou a alegação de perda de objeto (decorrente da revogação da portaria) e afirmou o dever constitucional de transparência.

Citando precedentes do STF e do STJ, a relatora destacou que o acesso à informação é um direito fundamental (art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal), sendo o sigilo a exceção, o qual exige fundamentação específica, o que não ocorreu no caso concreto. Enfatizou, ainda, que a revogação da portaria não afasta o interesse legítimo do sindicato em acessar os fundamentos da medida administrativa adotada.

A ordem foi concedida para determinar que a Secretaria da Economia credencie o SINDIFISCO/GO no sistema SEI, garantindo acesso integral ao processo administrativo requerido.

Com isso, o julgamento do TJGO confirma e reforça a prerrogativa institucional do sindicato de exercer controle e fiscalização sobre atos da administração pública que afetem direta ou indiretamente sua base representada.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Quita Goiás: sonegação insignificante?

A recente Portaria n.º 630/2024, publicada pelo Estado de Goiás, aliada à Lei Complementar n.º 197/2024, traz significativa mudança na forma de cobrança de créditos tributários. Por meio do programa “Quita Goiás” e de outros mecanismos de conciliação extrajudicial, o Poder Público goiano fixou em R$ 500 mil o valor mínimo para instauração de execuções fiscais.

Embora a proposta seja louvável ao buscar maior eficiência na arrecadação e reduzir a litigiosidade no Judiciário, ela pode gerar um grave efeito colateral na esfera penal tributária: a atipicidade (ou ausência de relevância penal) para condutas de sonegação abaixo de tal montante.

O problema se instaura quando analisamos as consequências penais do novo teto mínimo de cobrança. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido, de forma reiterada, que a aplicação do princípio da insignificância pode ser justificada em crimes tributários estaduais, desde que exista norma local que estabeleça determinado valor mínimo para a execução fiscal. Em outras palavras, quando o próprio ente federativo reconhece a irrelevância econômica do crédito tributário para fins de cobrança judicial, isso pode repercutir na esfera penal, configurando ausência de tipicidade material.

Dessa forma, condutas de sonegação abaixo do valor de R$ 500 mil podem ser consideradas atípicas em território goiano. Esse entendimento se apoia no raciocínio de que, se o Estado não considera vantajoso ou relevante economicamente perseguir judicialmente determinado débito fiscal, não haveria por que a esfera penal tutelar algo tido como “insignificante” para os cofres públicos.

A consequência prática dessa compreensão jurídica é preocupante. Se a Portaria 630/2024 considera “insignificantes” todas as dívidas fiscais abaixo de R$ 500 mil, isso pode levar à extinção de milhares de processos criminais envolvendo valores inferiores a esse montante, sob o argumento de ausência de relevância penal.

Além disso, as organizações criminosas especializadas em fraudes tributárias não terão dificuldades em estruturar, de forma sistemática, operações de sonegação envolvendo pequenos montantes que, somados, geram grandes perdas ao erário, mas que permaneceriam formalmente “menores que o teto”.

O programa “Quita Goiás”, ao fixar um piso de R$ 500 mil para a cobrança judicial, sugere um modelo de gestão fiscal mais racional. Entretanto, na seara criminal, a nova política gera o risco de esvaziar a importância penal de condutas de sonegação fiscal abaixo desse patamar, liquidando persecuções penais em curso e criando um “incentivo” perverso à sonegação contumaz. 

A busca pela redução de litígios não pode resultar no enfraquecimento dos mecanismos de repressão a crimes tributários e a organizações criminosas especializadas em fraudes estruturadas. Afinal, dificilmente o programa "Quita Goiás" receberá a adesão de uma empresa "noteira", ainda mais sem o perigo de repressão penal.