lista

  • Por que protegemos um sistema que nos fere?

Páginas

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Arrecadando falácias


As Administrações Tributárias (A.T.) dos estados, municípios e da União, são organismos estatais especializados em definir e controlar obrigações fiscais de seus cidadãos e corporações, cujas atribuições e competências de seus servidores concentram-se na ação de fiscalizar e arrecadar tributos, produzindo receita pública. No caso brasileiro, por força constitucional, tais tarefas são desempenhadas por servidores de carreiras específicas da A.T.
Em praticamente todo o mundo as A.T. e seus servidores possuem  competências,  atribuições e missão similares. Em Goiás isso não é diferente.
Daí, quando organizações ou servidores estranhos à A.T. propagam que são “responsáveis” pela arrecadação ou fiscalização de tributos, de qualquer espécie que seja, tal notícia deve ser recebida com forte reserva, pois, provavelmente está dissimulando um evento diferente, com intenção de invadir e apropriar-se das prerrogativas, competências e dos frutos do trabalho dos servidores da A.T., em especial do Auditor-Fiscal.
Foi exatamente essa circunstância que constatamos no dia de hoje (06/11/2018, terça-feira) ao lermos a coluna “Direito e Justiça” do jornal O Popular, onde se destaca: “PGE arrecada R$ 250 milhões no trimestre”, sugerindo que aquele órgão jurídico participa diretamente da arrecadação do ITCD, tendo recuperado R$ 200 milhões dessa espécie tributária entre agosto e outubro deste ano, além de outros R$ 50 milhões em execuções fiscais.
Para exemplificar a falácia dos números e fatos apresentados, transcrevemos no quadro abaixo toda a arrecadação do ITCD no período aludido pela PGE, observe:
       
Quadro posto, mesmo considerando todo o ITCD arrecadado em processos judiciais de partilha e inventário onde a PGE atuou por força de obrigação imposta pela lei processual civil, os R$ 200 milhões aventados mal passam de R$ 13 milhões, e, caso levado em conta somente o esforço da PGE, assim entendido como sendo o sucesso na expropriação de bens ou quitações efetuadas por meio de execuções fiscais promovidas pelo citado órgão, esse número não chega a R$ 1 milhão, ou menos de 0,5% do total arrecadado.
Aliás, considerando a lógica expendida pela PGE, no sentido de que a simples interveniência em processos de inventário e partilha produz arrecadação de tributos, teremos que tolerar outra falácia: os cartórios quando efetuam inventários e partilhas extrajudiciais também promovem a arrecadação direta do ITCD. A propósito, nesse sentido, os cartórios produziram no mesmo período uma arrecadação nove vezes maior, demonstrando muito mais eficiência que a PGE.
Esclarecemos que perto de 97% de toda arrecadação tributária estadual é fruto das rotinas adotadas pela A.T. no controle de obrigações fiscais principais e acessórias de seus contribuintes, que desencorajam a sonegação e incentivam o recolhimento espontâneo dos tributos devidos através de reprimendas legais previstas na legislação da espécie, dentre elas a inscrição em Cadin, declaração de devedor contumaz, desenquadramento, exclusão de parcelamentos, arrolamentos de bens e direitos, exclusão e cancelamento de benefícios ou incentivos fiscais, representação fiscal para fins penais, regime especial de fiscalização, dentre outras rotinas exclusivamente administrativas.
Os outros 3% restantes, oriundos de cobrança administrativa, judicial, acordos ou qualquer outra forma de recuperação de créditos,  também são frutos do trabalho do Auditor-Fiscal, pois foram originados da sua missão constitucional e privativa de constituir o crédito tributário, após verificar a ocorrência do fato gerador correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propondo a aplicação da penalidade cabível.
Há séculos, em qualquer lugar do mundo, foi o poder de polícia da Administração Tributária, conjugado com as prerrogativas e competências de seus servidores, que garantiram a arrecadação de tributos. Em Goiás isso não é diferente.  

Não acreditem em falácias.
Goiânia, 06 de novembro de 2018


quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Pingos no balde

No início do século passado nasceu a teoria do “trickle-down economics”, ou, em tradução livre, a teoria do gotejamento econômico.
De viés muito mais político do que econômico, a teoria defende que exonerações e incentivos fiscais concedidos pelo Estado aos ricos também beneficiam os pobres, pois, o excesso da prosperidade produzida pelos abastados, acaba escorrendo e penetrando nas camadas menos favorecidas da sociedade.
Utilizando de frases de efeito do tipo: “a maré sobe para todos os barcos”, os defensores da teoria do gotejamento transmitem ideia tão sedutora quanto enganosa; pois, nesse contexto, diferentemente dos ricos, os pobres não possuem barcos e mal sabem nadar.
O gotejamento econômico não passa de uma fantasiosa teoria para fazer crer que os mais pobres receberão oceanos de prosperidade por conta dos pingos que caem do topo da pirâmide social. É uma cruel piada!
Assim como a “Curva de Laffer”, a falácia do gotejamento é cortina que disfarça a real intenção de transferir riqueza para quem já é rico. Curiosamente, essa transferência é mais rápida quando operada em um sistema tributário com carga predominantemente regressiva, indireta e concentrada no consumo; como no caso brasileiro.
O Brasil, desde o descobrimento, sempre foi pródigo na concessão de benesses aos ricos, e, cinco séculos depois, ainda não se confirmou a propalada prosperidade que escorreria para os pobres com a pujança do andar de cima, que, aliás, sempre reclama por mais benefícios.
Hoje, o que os brasileiros pobres estão experimentando do trickle-down é o desmantelamento dos serviços públicos, em especial por conta do desequilíbrio fiscal que assola todos os estados e municípios do país.
O inacreditável é que, mesmo sabendo que esse mecanismo não goteja prosperidade aos pobres, e estando à beira da falência fiscal, o governo federal insiste em ajudar os ricos, anunciando favores fiscais na ordem de R$ 667 bilhões até 2020, gasto esse que pode chegar a R$ 1 trilhão, caso essa despesa seja somada à generosa renúncia fiscal que também é operada pelos demais entes da federação.
Mas isso não importa! O que importa é que desse oceano de renúncias fiscais em favor dos ricos, deve pingar alguma coisa - qualquer coisa que seja - no balde dos mais pobres.
Sempre pingou assim, e sempre foi o suficiente! Por que mudar então?
Claudio Modesto
Auditor-Fiscal e Diretor Jurídico do SINDIFISCO/GO




terça-feira, 25 de setembro de 2018

A reforma tributária que (não) interessa: a mitomania da simplificação



Quantas vezes já ouvimos que as leis brasileiras são feitas para beneficiar os ricos e/ou prejudicar os pobres? A quantidade de vezes que já ouvi tal assertiva me leva a crer que parte significativa das leis vigentes em nosso país carregam essa estigmatizante mácula.
Leis aparentemente austeras são constantemente mitigadas por subterfúgios jurídicos e atalhos legislativos que normalmente só os endinheirados conseguem trilhar. Isso, talvez, ocorra em razão de os ricos serem detentores ou patrocinadores da quase totalidade dos cargos eletivos do nosso país. Apesar de eticamente questionável, inegável que legislar em causa própria é um privilégio imensurável.
Nessa senda, tudo leva a crer que as leis tributárias brasileiras também foram urdidas para favorecer os ricos e penalizar os pobres.  A obra: A Reforma Tributária Necessária[1]; consolida dados da OCDE e RFB que demonstram com esmerada clareza como o sistema tributário brasileiro é benevolente com os ricos e cruel com os pobres.
Oportuno sintetizar alguns exemplos do altruísmo das leis tributárias brasileiras em relação aos abastados, observem:
     A tributação sobre o consumo, onde o pobre é mais afetado, representa cerca de 50% da carga tributária nacional, e apenas metade disso, cerca de 25% incidem sobre patrimônio (5%) e renda (20%), que pesam mais sobre os ricos;
     Representando menos de 1% da população, os ricos usufruem de  70% de toda a isenção concernente ao Imposto de Renda Pessoa Física - IRPF;
     As alíquotas efetivas do IRPF são progressivas até 40 salários mínimos e regressivas a partir desse patamar, despencando de 12% para 6% quando a renda atinge patamar superior a 160 salários mínimos por mês;
     A alíquota máxima do imposto brasileiro sobre heranças é de 8%; contra 22% da Argentina, 35% do Chile, 40% dos EUA, 50% da Alemanha, 55% do Japão, 60% da França, 64% da Espanha e 80% da Bélgica;
     O comemorado fim da obrigatoriedade da contribuição sindical que financiava entidades representativas dos trabalhadores, não alcançou as contribuições obrigatórias do chamado Sistema “S” (SENAI, SESC, SEBRAE, SENAT e SENAR); que se tratam de entidades patronais dirigidas pelo grande empresariado, cujas atividades são financiadas através da tributação mensal da folha de pagamento das empresas com alíquotas que chegam a 3%;
     Os crimes tributários no Brasil não são de “conduta” mas de “resultado” cuja materialização depende de um intrincado e demorado contencioso administrativo, e, mesmo ao final desse contencioso, há possibilidade de o sonegador ver a sua punibilidade extinta ou suspensa com o pagamento ou parcelamento do débito, que na maioria da vezes ocorre através de programas fiscais de  recuperação que reduzem ou eliminam as multas aplicadas em razão da infração praticada, às vezes o perdão fiscal alcança até mesmo os juros e a correção monetária  incidentes sobre o débito. Trata-se, pois, de um verdadeiro prêmio ao sonegador;
     As grandes empresas conseguem cumular benefícios com incentivos fiscais do ICMS, o que, na prática, chega a reduzir a carga desse tributo estadual para cerca de 1% do faturamento bruto da grande empresa beneficiada. Trata-se de uma carga tributária de ICMS equivalente à que incide sobre microempresas enquadradas na menor faixa de tributação do Simples Nacional, e quase quatro vezes menor caso essa empresa esteja enquadrada na maior faixa do mesmo Simples Nacional;
     Iates, lanchas, Jet Skis, jatinhos e helicópteros; bens duráveis de elevadíssimo valor, não obstante se enquadrarem no conceito de veículo automotor, não sofrem incidência do IPVA;
     Com previsão constitucional desde 1988, 30 anos depois, o Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF, ainda não faz parte da agenda tributária do governo federal, sequer havendo nesse tempo um debate razoável sobre o tema por parte do Congresso Nacional.
Outro emblemático exemplo que entendo ser o suprassumo da benevolência tributária que a legislação brasileira dedica aos ricos, é o fato de o Brasil isentar de impostos os lucros e dividendos auferidos pelos ricos. Em todo o planeta, fora o Brasil, somente a Estônia teve a especial gentileza de isentar de impostos o topo da pirâmide social.
Não à toa pesquisadores do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em sua pesquisa[2] concluíram que:
“[...] o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super-ricos, combinando baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa física”(grifamos)
Ora, se a lei tributária brasileira atende muito bem as necessidades que os ricos têm de manter e aumentar a própria riqueza, resta entender então por que eles ainda clamam por reformas. A resposta é singela: querem simplificação[3],  transformando o que já é bom em ótimo!
Não estamos aqui criticando a necessidade de simplificação do arcabouço tributário brasileiro, que, em muitos casos, causa embaraços ao próprio fisco. Outrossim, enviar proposta de reforma tributária ao legislativo sem previsão de revisão da perversa lógica de tributar mais o consumo e menos o patrimônio e a renda, apresenta-se socialmente inaceitável.
A simplificação pura e simples seria a infeliz consagração do  problema da tributação brasileira: a injustiça! Chega a ser covarde clamar por reformas para, ao final, preservar o pesado ônus que nossa tributação ocasiona às camadas mais pobres da sociedade, viabilizando assim que os donos da riqueza brasileira continuem a não subsumir seus vultosos rendimentos e patrimônio à tributação progressiva, conforme a respectiva capacidade contributiva.
Doutra banda, quando os autores da proposta de simplificação nua e crua do sistema tributário apegam-se no princípio existente no art. 179 da CF/88[4] - visando estender aos grandes o que a Constituição reserva somente aos pequenos - acabam cometendo outro desserviço social, aprofundando ainda mais a realidade regressiva do nosso sistema tributário.
Isso porque sistemas tributários efetivamente justos e progressivos, que taxam mais quem ganha mais, necessitam de mecanismos de fiscalização e controle mais complexos, tanto para manter a progressividade necessária do sistema, quanto para aferir a capacidade efetiva de contribuição de determinado contribuinte; circunstâncias que vão, curiosamente, na contramão da simplificação almejada pelos ricos.
Destarte, uma reforma que seja minimamente justa deve ir além da mera simplificação do sistema, buscando, sobretudo, reduzir a desigualdade e promover o desenvolvimento social e econômico. Para tal, não basta reduzir bases e alíquotas fiscais, mas principalmente redistribuir a carga tributária para que a lógica da capacidade contributiva, da progressividade e da essencialidade; ganhem real sentido no cotidiano do brasileiro comum.
A diminuição das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, passam, obrigatoriamente, por uma reforma tributária justa e solidária; que se encontra bem distante da mitomania que carrega a proposta de simplificação defendida no Congresso Nacional por notórios representantes dos ricos.
Devemos, vigorosamente, atacar de frente as incongruências do nosso sistema tributário para, finalmente, viabilizar e fazer valer o Estado Social que os brasileiros merecem, especialmente os mais necessitados.
Setembro/2018

Cláudio Modesto
Auditor-Fiscal da Receita Estadual
Diretor Jurídico do SINDIFISCO/GO



[1] ANFIP. FINAFISCO. A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas. Eduardo Fagnani (organizador). Brasília: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018.804P.

[2] Gubetti, Sérgio Wulff ; Orair, Rodrigo Octavio. Tributação e distribuição de renda no Brasil: novas evidências a partir das declarações tributárias de pessoas físicas. International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC/ONU), Brasília, 2016.
[3] Medida de simplificação tributária deverá ser encaminhada ao Congresso Nacional,  A proposta prevê o fim da cumulatividade das contribuições sociais do PIS e Confins. Disponível em:  http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/554357-MEDIDA-DE-SIMPLIFICACAO-TRIBUTARIA-DEVERA-SER-ENCAMINHADA-AO-CONGRESSO-NACIONAL.html, Acessado em: 25/09/2018
[4] (CF/1988) Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Crime contra o Estado tem data marcada em Goiás




Maria Lucia Fattorelli[i]

Está anunciado para o próximo dia 14 de agosto de 2018, o “pregão” para a escolha de instituição que pretende viabilizar a implantação de esquema que desvia recursos arrecadados de contribuintes durante o seu percurso pela rede bancária; gera dívida pública ilegal, comprometendo gerações atuais e futuras e, ainda por cima, provoca prejuízos e impõe elevadíssimos custos para o  Estado.

O Edital (disponível em https://goo.gl/BKPGMz), apesar de graves omissões, resume os termos da contratação da instituição a ser escolhida para estruturar a operação de emissão de papéis financeiros (debêntures) pela empresa Goiás Participações S/A, estatal criada para operar esse esquema, denominado Securitização de  Créditos.

No anexo “Termo de Referência” o referido Edital menciona o custo estimado das taxas que o Estado de Goiás se obriga a pagar à instituição a ser contratada. O valor estimado inicialmente é de R$  325.532.926,33, sendo: R$ 21.969.890,64 referente  à Taxa de Estruturação; R$ 45.000.000,00 à Taxa de Distribuição; R$ 184.547.081,39 à Taxa de Administração; R$ 74.015.954,30 à Taxa de Performance! Além dessas taxas, ainda haverá outros ônus, tais como “Prêmio de Performance”, atualização monetária, garantias e indenizações.

O que justificaria esse exorbitante custo superior a R$ 325 milhões?

Falsa propaganda tem pregado que aqueles créditos podres, que o Estado não consegue arrecadar, passariam a ser recuperados por esse esquema, porém, o próprio Edital não deixa a menor dúvida de que o que está sendo cedido não serão aqueles créditos podres, mas sim o fluxo da arrecadação de créditos tributários líquidos  e  certos, podendo outros créditos administrativos também fazer parte desta cessão.

Em outras palavras: o Estado continuará com a responsabilidade de administrar a cobrança do crédito tributário, exercendo todas as atribuições de fiscalização e cobrança, como consta do Edital:

III – Todos os atos e procedimentos de cobrança dos créditos inadimplidos do Estado de Goiás permanecem sob a exclusiva responsabilidade dos órgãos da Administração Estadual, em especial da Procuradoria Geral do Estado – PGE e da Secretaria de Estado da Fazenda.
Porém, quando o recurso for efetivamente arrecadado de contribuintes, em vez de ser destinado diretamente aos cofres públicos, como determina a legislação, será desviado e sequestrado durante o seu percurso pela rede bancária. Em vez de chegar aos cofres públicos, recursos  arrecadados  serão transferidos diretamente para investidores privilegiados que adquirirem os tais papéis financeiros emitidos pela Goiás Participações S/A, como mostra o diagrama a  seguir:




Tal operação é flagrantemente inconstitucional, pois toda a legislação de finanças do país é regida com base no princípio orçamentário, ou seja, todas as receitas (tributárias, financeiras, patrimoniais, comerciais etc.) devem obrigatoriamente  chegar ao orçamento público e, deste, só podem ser destinadas com base na lei orçamentária (LOA) aprovada pelo poder legislativo correspondente (federal, estadual, distrital ou municipal).

No presente caso,  toda   a legislação de  finanças  do   país é  explicitamente  ignorada, na medida em que o Edital menciona expressamente que “A  remuneração   da contratada será realizada por êxito, conforme descrição no Termo de Referência, motivo pelo qual não são indicados os recursos  orçamentários.”

É inacreditável! O pagamento das remunerações será  feito  por  fora     do orçamento,  com  recursos  do  fluxo  de  arrecadação  desviados.  Trecho  do  Edital, na parte que trata da Taxa de Administração explicita esse  desvio:

A Taxa de Administração será aplicada sobre o valor  dos créditos inadimplidos representando o valor a ser pago pelo Serviço de administração           que constitui o acompanhamento/administração  do estoque e fluxo financeiro lastreado da Emissão do Modelo Securitizador de Créditos escolhido, Conforme definido na Licitação.   Esta remuneração será devida mensalmente e será suportada com os recursos decorrentes da administração e recebimento dos créditos cedidos para o Modelo  Securitizador.

O Edital contém diversas e graves omissões, por  exemplo:
·  O “Modelo Securitizador” não vem detalhado no  Edital;
·  O Edital menciona que o referido “Modelo Securitizador” deveria vir definido na “Licitação” (com letra maiúscula), mas tal documento também não foi divulgado;
·       O  instrumento convocatório”, onde estarão as “cláusulas avençadas” a serem cumpridas pelo Estado de Goiás também não faz parte do Edital publicado.
Ademais, o Edital contém verdadeiras “pegadinhas” que podem enganar a muitos desavisados.

No trecho que diz “II – O Estado de Goiás não é garantidor dos ativos securitizados, cabe ressaltar que “ativos securitizados” são os créditos tributários devidos por contribuintes que, logicamente, caso não cumpram o seu pagamento, continuarão devendo ao Estado e este não irá garantir tal  pagamento.
Por outro lado, nos termos do Edital, o Estado de Goiás  é  garantidor  dos ativos (debêntures sênior) a serem emitidos pela Goiás Participações S/A, e tal garantia é real e antecipada, na medida em que o Estado cede prioritariamente o fluxo   da arrecadação tributária, como já ilustrado!
Também no trecho “I - Não assunção, pelo Estado de Goiás, de qualquer compromisso financeiro para com terceiro”, a “pegadinha” está no termo “para com terceiro” que sequer faz parte do contrato. Chega a ser ridículo! O compromisso do  Estado é com as partes do contrato.
O compromisso financeiro do Estado, de garantir a operação e ceder o fluxo da arrecadação, inclusive obrigação de indenização, está expresso no  Edital:

Tabela 01: Termos e Condições Gerais ...
Cedente dos Ativos: Estado de Goiás
...
Ativo Lastro: Cessão de fluxo financeiro correspondente à  cobrança  de direitos creditórios originários de créditos inadimplidos, tributários e não  tributários, parcelados ou não, em fase administrativa ou judicial, relacionados    ao ICMS, IPVA e ITCMD, às taxas de qualquer espécie ou origem, as multas administrativas de natureza não tributaria, as multas contratuais, aos ressarcimentos e às restituições e  indenizações.

Os papéis financeiros emitidos pela Goiás Participações S/A serão de  pelo menos 2 tipos:

Ø  SÊNIOR: DEBÊNTURES COM GARANTIA REAL, que são vendidas a investidores privilegiados e, nos demais entes federados onde o esquema  está funcionando, pagam juros elevadíssimos. A garantia é dada  pelo  Estado, mediante a entrega do fluxo da  arrecadação.

Ø  SUBORDINADAS: DEBÊNTURES SIMPLES, emitidas no mesmo volume dos créditos cujo fluxo será cedido. São entregues para o ente federado, em troca da cessão do fluxo da arrecadação tributária. Servem  para  documentar a garantia pública concedida pelo Estado para as debêntures sênior, porém, em volume muito maior que o valor  destas!


O Edital do “pregão” menciona explicitamente a obtenção de recursos junto ao mercado financeiro, ou seja, contratação de operação de crédito:

 A colocação no mercado financeiro dos Ativos de natureza sênior (distribuição) para fins de geração de recursos, dentro dos termos e regras definidos na Instrução da Comissão de Valores Mobiliários – CVM nº 476 e modificações subsequentes.” 
Essa geração de recursos corresponde à contratação disfarçada de dívida pública. A empresa estatal (Goiás Participações S/A) funcionará como mera fachada   para a obtenção de recursos junto ao mercado financeiro, a um custo escandaloso, pois além dos juros elevadíssimos, o Estado perde o controle sobre o fluxo da arrecadação transferido!

A Goiás Participações S/A irá emitir papéis financeiros (debêntures sênior), os quais serão vendidos a algum investidor privilegiado, únicos que têm acesso a emissão “com esforços restritos” de que trata a Instrução CVM no 476. Os recursos gerados com essa colocação de debêntures no mercado serão pagos à empresa Goiás Participações S/A, criada para operar o esquema, mas esta fica com apenas uma parte dos recursos gerados e repassa a maior parte ao ente federado, como mostra o diagrama a   seguir:


No caso de Belo Horizonte o banco BTG Pactual S/A, que foi o coordenador líder da operação de lançamento das debêntures, comprou a totalidade desses papéis (que pagam juros equivalentes a IPCA + 11%) por R$ 230 milhões. A empresa PBH Ativos  S/A  ficou com R$ 30  milhões e  repassou R$  200  milhões para  o  município  de Belo Horizonte. O mecanismo foi uma mera fachada para o município obter esses R$ 200 milhões no mercado. Como esse empréstimo não é contabilizado como dívida, o seu pagamento se dá por fora, com aqueles recursos desviados ainda na rede bancária;

O presidente da PBH Ativos S/A que emitiu as debêntures em 2014 foi Edson Reinaldo  Nascimento, a mesma pessoa que agora assessora o Estado de Goiás, conforme Portaria Intersecretarial nº 11 –  PREVCOM/2018-PGE.

Diversas ilegalidades embutidas nessas operações ferem a Constituição Federal, o Código Tributário Nacional, a Lei de Responsabilidade Fiscal e toda   a legislação de finanças do país. Por i  so, graves questionamentos por parte de  órgãos de controle federais, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público de Contas, e estaduais, como o Tribunal de Contas dos Estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Sul têm sido levantados (Ver ALERTA CONTRA O PLP 459/2017, disponível  em https://goo.gl/sS5YY4).

Recentemente, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná proibiu definitivamente a operação da empresa PRSec (empresa criada nos mesmos moldes da Goiás Participações S/A, PBH Ativos S/A, CPSEC S/A entre outras), conforme decisão completa disponível em https://goo.gl/VXPc1D

  De acordo com o Edital do “pregão”, as debêntures sêniores emitidas pela Goiás Participações S/A não serão registradas na CVM, o que fere frontalmente a Lei no 6.385/76. Isto porque o referido Edital menciona como base legal para a emissão das debêntures a Instrução CVM no 476, a qual exime a própria Comissão de cumprir a Lei  nº 6.385/76, senão vejamos:

Ø O caput do art. 19 da Lei nº6.385/76 diz:
Art. 19. Nenhuma emissão pública de valores mobiliários será distribuída no mercado sem prévio registro na Comissão.

Ø O art. 6º da Instrução CVM º 476/2009   diz:
Art. 6º As ofertas públicas distribuídas com esforços restritos estão automaticamente dispensadas do registro de distribuição de que trata o caput do art. 19 da Lei no 6.385, de 1976.
Como é possível que a própria Comissão (CVM) que a Lei 6.385/76 determina que faça   o registro prévio se exima de cumprir a referida lei? O texto do Art. 19 da referida lei não abre exceção alguma à necessidade de registro dos papéis financeiros de emissão pública, no entanto, a CVM criou uma exceção “automática” para o caso de emissão pública “com esforços restritos”. E o que significa esforços restritos? Não há qualquer propaganda, de tal forma que somente poucos privilegiados tomam conhecimento da referida oferta e, ademais, apenas grandes operadores do mercado financeiro terão acesso a esse tipo de operação endereçada a privilegiados!

Outra ilegalidade flagrante é a própria modalidade do “pregão eletrônico” para a escolha da instituição que pretende fazer a estruturação das debêntures a serem emitidas pela empresa estatal Goiás Participações S/A.

A Lei no 8.666/93, que regulamenta as licitações no Brasil, não trata da modalidade de pregão eletrônico. Tal modalidade surgiu com a Medida Provisória no 2.026/2000, reeditada sob o no 2.182/2001 e transformada em Lei no 10.520/2002. O Decreto no 3.555/2000 continha 2 anexos, que regulamentavam essa modalidade de pregão e  trazia lista de bens e serviços comuns.

Apesar de revogado o detalhamento dos “bens e serviços comuns” pelo Decreto nº 7.174/2010, o art. 5º. do Decreto nº 3.555/2000, que continua em vigor, regulamentou essa espécie de pregão e estabeleceu que tal espécie não pode ser utilizada para “alienações em geral”. No caso em exame, o Estado de Goiás aliena o fluxo da arrecadação tributária, segundo os “Termos e Condições” constante do   Edital.

No caso idêntico analisado em Belo Horizonte, onde uma CPI foi instalada na Câmara Municipal para investigar as operações da PBH Ativos S/A (idêntica à Goiás Participações S/A), a referida “cessão do fluxo financeiro” foi formalizada em contrato   de cessão fiduciária dos créditos, mediante o qual o município de Belo Horizonte transferiu a propriedade do fluxo de arrecadação em caráter irrevogável e   irretratável!

Caso não tivesse sido implementado esse esquema em Belo Horizonte, o município teria R$ 70 milhões a mais em caixa. Então, numa operação de R$ 200 milhões, em apenas 3 anos, o município já teve perda comprovada de R$ 70 milhões, conforme dados oficiais analisados pela CPI da Câmara Municipal de Belo Horizonte, que permitiu acesso a escrituras, documentos contábeis e contratos da PBH Ativos S/A, cuja análise revelou que referida empresa é mero veículo de passagem para confundir e dificultar a visualização das operações ilegais e fraudulentas que envolvem    o desvio e sequestro de recursos públicos, além da perda de controle sobre a arrecadação tributária e danos financeiros  efetivos.
Relatório apresentado pela Auditoria Cidadã da Dívida à CPI da PBH Ativos S/A, disponível no link https://goo.gl/rAKGPa detalha a operação e todas as citações do referido relatório encontram-se devidamente fundamentadas em provas e documentos que comprovam o escândalo contido no esquema financeiro semelhante ao que se pretende implementar em Goiás.

Diante do exposto, é importante que todas as autoridades, entidades da sociedade civil e todos os cidadãos e cidadãs tomem conhecimento da inconstitucionalidade flagrante, ofensa a toda a legislação que rege as finanças em nosso país que a operação anunciada no Edital para estruturar a operação de emissão de papéis financeiros (debêntures) pela empresa estatal Goiás Participações S/A, representa. Em poucas palavras, representa o início de um crime contra o Estado de Goiás e seu povo que ainda pode ser evitado!




[i] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida < www.auditoriacidada.org.br > e <https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina>. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulou para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia (2015).


quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Quem pega o sabonete?


“Compre sempre na baixa, venda sempre na alta e não se abaixe para apanhar o sabonete”. A frase, atribuída ao genial Millôr Fernandes, retrata bem a cupidez e o escasso pudor das regras que predominam no mercado financeiro.

Essa falta de pudor ganha contornos ainda mais ousados quando a vontade de lucrar do mercado une forças com a perene necessidade dos governos em fazer dinheiro fácil e rápido, como, por exemplo, ocorre com a proposta de securitização da dívida ativa, que ultraja regras básicas de conservação da higidez fiscal.

Com o falacioso discurso de que a securitização tem por objeto os créditos podres que o Estado não consegue receber, esquiva-se de explicar por qual razão a cobrança do crédito continuará sob a responsabilidade do Estado mesmo depois de cedido ao mercado, que a partir de então seria o único interessado nessa cobrança.

A razão da cobrança continuar com o Estado é que não existe a cessão do crédito em si, mas sim do dinheiro já recolhido pelo contribuinte. Termos da proposta como “direitos originários” e “cessão de fluxo financeiro”, autorizam que a receita pública arrecadada pela rede bancária seja diariamente capturada e desviada como garantia que o Estado não deixe de remunerar o investimento exatamente como pactuado.

Também não explica que os ativos classificados de “sênior” e “subordinado” distinguem os créditos bons dos podres, sendo os bons colocados no mercado por meio da modalidade “esforços restritos”, significando que serão discretamente direcionados a investidores privados privilegiados, e os créditos podres devolvidos ao ente público cedente.

A proposta nada mais é do que a possibilidade do rápido ingresso de dinheiro em caixa através de uma disfarçada e salgada operação de crédito, que será garantida pela alienação fiduciária da receita tributária oriunda de créditos líquidos e certos, produzindo com isso um passivo muito maior que o valor recebido, que será penosamente pago com exponencial dano à receita pública dos exercícios seguintes.

Não por acaso propostas semelhantes foram recebidas com duras críticas dos órgãos de controle de diversos entes da federação, alguns respondendo com ações de improbidade contra os idealizadores locais da securitização.

Caso a securitização se concretize por estas bandas, não tenho dúvidas de quem será obrigado a se abaixar para pegar o sabonete.

Então, torçamos para que não o deixem cair.


Cláudio Modesto
Auditor-Fiscal e Diretor Jurídico do SINDIFISCO/GO