Uma Ação Civil Pública (ACP) foi ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP/GO) em face da Portaria nº 630-GAB/2024, da Procuradoria-Geral do Estado, a qual estabelece novo limite mínimo de R$ 500 mil para o ajuizamento de execuções fiscais, substituindo o patamar anterior fixado pela Lei Estadual nº 16.077/2007, significativamente inferior.
O MP sustenta que a referida portaria contraria o princípio da legalidade estrita, especialmente em matéria tributária, e afronta o arcabouço normativo vigente, com potencial prejuízo ao erário estadual e efeitos colaterais relevantes na aplicação da lei penal.
Uma das preocupações do MP, com razão, é a possibilidade de incidência indevida do princípio penal da insignificância, uma vez que, conforme argumenta, “não seria razoável que o Estado ajuizasse uma ação penal se não se dá ao trabalho de propor a correspondente execução fiscal.”
Entretanto, dois aspectos graves e substanciais não foram devidamente explorados na ACP, merecendo destaque e aprofundamento.
O primeiro aspecto reside na interferência direta da norma infralegal estadual sobre o regime da prescrição penal aplicável aos crimes tributários materiais previstos na Lei nº 8.137/90. Ao deliberadamente abdicar da cobrança judicial de tributos constituídos, a portaria antecipa os efeitos extintivos da punibilidade, convertendo, na prática, um prazo prescricional penal que varia de 8 a 12 anos (art. 109 do Código Penal) em um período de apenas 5 anos, prazo este previsto para a prescrição tributária no art. 174 do CTN.
É importante destacar que, ao contrário da prescrição civil, a prescrição tributária não afeta apenas a pretensão de cobrança, mas extingue o próprio crédito tributário (CTN, art. 156, inciso V). Assim, a inércia no ajuizamento da execução fiscal, motivada por ato infralegal estadual, não só compromete a arrecadação, como torna inviável a persecução penal, pois o crédito extinguido faz desaparecer a conduta penalmente tipificada, que depende da existência jurídica do crédito omitido ou suprimido.
Este ponto evidencia uma usurpação de competência privativa da União, uma vez que a disciplina sobre prazos de prescrição penal é matéria de direito penal, regida por norma federal (CF, art. 22, I). A portaria, portanto, produz reflexos que extrapolam sua competência material e normativa, violando a repartição constitucional de competências.
O segundo ponto omitido no debate judicial refere-se ao modelo de incentivo institucional criado pela própria PGE em outra norma infralegal — a Portaria nº 55-GAB/PGE/2025, que autoriza a incidência de honorários advocatícios já na fase de cobrança administrativa.
Tal previsão rompe com a lógica tradicional, na qual os honorários só são devidos após a constituição de litígio judicial. Agora, o contribuinte que regularizar seu débito administrativamente, muitas vezes procurando a repartição fiscal espontaneamente, passa a arcar com um acréscimo de 10%, valor que anteriormente só existiria no contexto de uma demanda judicial.
A contradição é evidente: a alegada eficiência e economicidade da via administrativa é utilizada como argumento para justificar a dispensa da execução fiscal, mas, ao mesmo tempo, onera o contribuinte com encargos típicos da fase judicial, criando uma “remuneração por fora” da litigiosidade. Na prática, trata-se de um desvio de finalidade: o novo modelo de cobrança foi estruturado não para servir ao interesse público arrecadatório, mas como instrumento de incentivo remuneratório para os membros da própria instituição que o criou.
Essa lógica subverte os princípios da legalidade, moralidade e economicidade administrativa, gerando um evidente conflito de interesses. A decisão de não ajuizar a execução fiscal deixa de ser orientada por critérios técnicos e passa a ser influenciada pelo retorno financeiro direto, rápido e garantido aos agentes públicos envolvidos. Nessa perspectiva, a cobrança administrativa de créditos tributários deixa de refletir o interesse público e passa a ser conduzida conforme critérios de conveniência e oportunidade de uma categoria funcional específica, em prejuízo da função arrecadatória do Estado.
Os argumentos apresentados pela PGE em defesa do modelo revelam-se meramente aparentes. Basta suprimir o componente remuneratório — os 10% de honorários advocatícios na via administrativa — para que toda a retórica de “eficiência”, “modernidade” e “redução de custos” desmorone. Sem o incentivo financeiro, a suposta nova lógica de cobrança se esvazia, e o sistema retornará, por inércia, ao modo tradicional — não por questões técnicas ou jurídicas, mas pela simples falta de interesse da PGE em mantê-lo sem o retorno financeiro aos seus membros.
A Portaria nº 630-GAB/2024 não é apenas uma opção administrativa de gestão fiscal. Ela altera substancialmente o regime jurídico da cobrança tributária e compromete a higidez do sistema penal e arrecadatório, extrapolando os limites de sua legalidade formal e material. Associada à Portaria nº 55-GAB/PGE/2025, a medida revela-se como um mecanismo estratégico de monetização interna, com nítido viés corporativista, cuja manutenção compromete o controle legítimo da cobrança de créditos tributários e distorce a lógica da repressão penal tributária, ao esvaziar deliberadamente a efetividade da persecução criminal.
A sistemática de cobrança atualmente em vigor materializa um verdadeiro paradoxo institucional: sacrifica-se o crédito tributário para assegurar o triunfo dos honorários. Instaura-se, assim, um mecanismo que transforma a prescrição do crédito em oportunidade de ganho, subvertendo o interesse público. Trata-se de uma lógica que, ao contrário do que proclamam seus formuladores, inverte os princípios da eficiência, da economicidade e da moralidade administrativa.