TJ/GO - APELAÇÃO CRIMINAL 294545-55.2007.8.09.0051
DJe 1494 de 27/02/2014
Cláudio César Santa Cruz Modesto
1. INTRODUÇÃO
APELAÇÕES
CRIMINAIS. RECURSOS DA ACUSAÇÃO E DO RÉU. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART.
2º, II, DA LEI 8.137/90. ICMS PRÓPRIO REGULARMENTE DECLARADO AO FISCO. NÃO
RECOLHIMENTO NO PRAZO LEGAL. MERO INADIMPLEMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
ABSOLVIÇÃO. A conduta delituosa positivada no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90,
exige para sua configuração o não recolhimento de tributo “descontado” ou
“cobrado”. Relativamente ao ICMS, apenas o substituto tributário pode descontar
ou cobrar o imposto do real contribuinte substituído, apropriando-se de valores
na qualidade de depositário para o ordinário repasse ao Fisco. Diferente ocorre
quando se trata de ICMS devido pelo próprio contribuinte em relação a
circulação de suas mercadorias. Nesse caso, o empresário não cobra do
consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe
transfere o ônus, assim como também é repassado todos os dispêndios do custo
operacional da bem, a exemplo da folha de salários, insumos, matéria-prima,
etc. No âmbito do direito civil, só se pode cobrar de quem deve o que está
sendo cobrado. O consumidor final não detém qualquer vínculo ou relação
jurídico-tributária com o Fisco, portanto, não lhe pode ser cobrado o tributo.
Sendo o ICMS próprio regular e contabilmente lançados nos livros fiscais da
empresa contribuinte, bem como declarado à Fazenda, sem contudo, haver o
ordinário recolhimento dos valores, a omissão não ultrapassa o mero
inadimplemento, passível de persecução no procedimento cível da execução
fiscal. Ausência de injusto penal. Denúncia que descreve fato atípico.
Absolvição. APELAÇÕES CRIMINAIS CONHECIDAS. DESPROVIDA A PRIMEIRA APELAÇÃO E
PROVIDA A SEGUNDA.
(TJGO,
APELACAO CRIMINAL 294545-55.2007.8.09.0051, Rel. DES. JOAO WALDECK FELIX DE
SOUSA, 2A CAMARA CRIMINAL, julgado em 13/02/2014, DJe 1494 de 27/02/2014)
Extrai-se
da ementa supratranscrita que o douto relator firmou entendimento pela
atipicidade da conduta prevista no Art. 2º, II da Lei 8.137/90[1], cujas principais razões são
assentes na conclusão de que o tributo objeto da conduta, o ICMS, para que sua
supressão configure o tipo penal em tela, necessitaria que o seu não
recolhimento fosse precedido de valor efetivamente “descontado” ou “cobrado” de
terceiro.
Entendeu
o eminente relator que no caso concreto o ICMS é devido pelo próprio
contribuinte em relação à circulação de suas mercadorias; e, no caso, o
empresário não cobrou do consumidor final o valor do tributo (ICMS) embutido no
preço do produto, apenas lhe transferiu o ônus.
Continua
com a conclusão de que o consumidor final não possui qualquer relação
jurídico-tributária com o fisco; e, por tal, não pode desse ser cobrado o ICMS,
o que só ocorreria em caso de a exação se encontrar sujeita ao regime de Substituição
Tributária.
Finaliza
que o caso é de mero inadimplemento, passível apenas de persecução na esfera
civil através dos procedimentos e instrumentos disponibilizados à Fazenda
Pública na execução de seus créditos.
2.
DA
CRÍTICA
Apesar de, em principio,
os fundamentos lançados pelo eminente relator possuírem lastro na lei, doutrina
e jurisprudência; entendemos que foram lançados em um contexto equivocado, em
especial por se fundar em aspectos jurídico-tributários que envolvem o ICMS;
sem, contudo, levar em consideração circunstâncias, características e fatos fundamentais
para a compreensão do caso concreto.
As omissões verificadas
na construção do voto do eminente relator, que entendemos serem as responsáveis
pelo equivocado entendimento, têm por mais patente a desconsideração da natureza indireta do tributo ICMS.
Desprezou-se também a sua característica patrimonial,
o que acabou por mitigar o princípio da não-cumulatividade
nas operações que envolvem o referido tributo.
Consentâneo apontar de
inicio a primeira falha verificada na construção do voto vencedor (erro de
fato), quando da análise do caso concreto, que mesmo se mostrando sutil, entendemos
ter contribuído muito para a sucessão de equívocos operados em seguida.
Em
seu eminente voto o ilustre relator foi taxativo: “O comerciante varejista de
um produto X tem como escopo vendê-lo ao consumidor
final, daí auferindo lucro da atividade [...] Portanto, dúvidas não há, o
comerciante varejista acima é
contribuinte do ICMS”. (grifamos)
Na
lavratura do acórdão assim resume tal entendimento: “Nesse caso, o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas
apenas lhe transfere o ônus”.
(grifamos)
Após
transcrição dos trechos do venerando voto e acórdão, é nítida a confusão feita
pelo eminente relator ao atribuir à atividade empresária que o réu administrava
a do ramo varejista, e aos seus respectivos
clientes a pecha de mero consumidor
final.
È
notório o fato de a sociedade empresária administrada pelo réu (EMEGE) se tratar
de uma grande indústria alimentícia predominando
em sua carteira de clientes grandes atacadistas
e supermercadistas; razões que
excluem esses últimos da acepção jurídica do termo consumidor final dos produtos vendidos pela primeira, e, desta, a condição
de varejista.
Tal
fato, per si, joga por terra o
entendimento que a conduta praticada no comando da sociedade empresária
exercida pelo réu não pode ser tipificada porque não houve cobrança do ICMS na operação de venda, já que os ditos “consumidores finais” não possuem
relação jurídico-tributária no fato gerador.
Se
analisarmos o caso concreto como realmente se deve, logo perceberemos que as
relações jurídico-tributárias envolvidas nas operações mercantis da EMEGE com
seus clientes, em relação ao ICMS, são evidentes.
Para
ilustrar tal relação conjecturamos a cadeia de industrialização e comércio
contida nas tabelas que se seguem, utilizando alíquotas de ICMS e de IVA fixos,
em 10% e 100% respectivamente, referente a industrialização a comercialização
de macarrão (produto principal da indústria administrada pelo réu). Observe:
Ora,
atendendo o princípio da não comutatividade e o da natureza indireta do ICMS;
e, ainda, em respeito ao preceito contido na LC nº. 87/96, que estipula que o
montante do próprio imposto integra a
sua base de cálculo, constituindo o seu destaque no documento fiscal “mera indicação para fins de controle”,
a ciência contábil atribuiu
característica iminentemente patrimonialista ao ICMS.
Tanto
é que reservou no ativo circulante conta gráfica específica para o ICMS a recuperar. Observe que na
escrituração das operações mercantis o valor egresso do caixa (disponível) para
pagamento da mercadoria é exatamente o valor da operação (100%), porém na
escrituração dessa mesma operação as mercadorias são contabilizadas
excluindo-se o ICMS cobrado no negócio jurídico, que fica reservado para futuras
compensações.
Fácil
então inferir a lógica do tributo indireto e não cumulativo: o ICMS pago pelo produtor é cobrado do industrial, que por sua vez,
cobra do atacadista seu ICMS NORMAL,
mais o ICMS que pagou ao produtor
rural, repassando ao atacadista o montante do ICMS até então envolvido nas
operações anteriores; que por sua vez
cobra do varejista o seu ICMS NORMAL, mais o do produtor, mais o do
industrial, repassando ao varejista o montante do ICMS até então envolvido nas
operações anteriores; que por sua vez finaliza o ciclo cobrando do consumidor final o seu ICMS NORMAL juntamente com todo
o montante do imposto envolvido até então nas operações anteriores.
Verifica-se
assim que ao contribuinte de fato não
é dada a oportunidade de não ser cobrado pelo ICMS nas operações
anteriores, restando a esse suportar o ônus do referido tributo, e, dependendo
de sua posição na cadeia da produção, comercialização e consumo, compensá-lo
nas operações futuras.
Ressalta-se
que quando o recolhimento do ICMS NORMAL não é efetuado por um dos envolvidos
nessa cadeia, o crédito por ele destacado em sua nota fiscal, apurado e não
pago, será normalmente aproveitado e compensado pelo próximo sujeito da cadeia
empresarial, que afinal foi efetivamente
cobrado
por tal tributo, tanto é que o contabilizou separadamente
em conta específica do seu ativo, como faz com qualquer bem ou direito.
Daí
ser evidente que muito além da mera repercussão
econômica como ocorre com os tributos diretos,
onde o empresário repassa os custos do encargo para o preço da mercadoria, há
verdadeiramente uma relação evidenciada pela relação jurídico-tributária entre contribuinte de fato e direito, característica do tributo indireto.
Tal
entendimento tem o alicerce dos ensinamentos de Ricardo Alexandre (2011, p.
106) que discorrendo sobre o Imposto de Renda, tributo iminentemente DIRETO, assim lecionou, com grifos
nossos:
Há a repercussão econômica do tributo, mas não o que se poderia chamar
de repercussão jurídica, somente
verificada nos casos em que há previsão normativa da oficial transferência do encargo. O tributo (IR) é considerado
direto.
Os economistas, baseados na
indiscutível tese de que praticamente todo tributo tem a possibilidade de ter
seu encargo econômico repassado para o consumidor de bens e serviços afirmam que a classificação dos tributos
como diretos ou indiretos e irrelevante. Não obstante tal entendimento, existe uma profunda relevância jurídica
na classificação quando se comparam as regras relativas a restituição de
tributo direto com aquelas referentes aos tributos indiretos. Ademais, a
inaplicabilidade de critérios econômicos para qualificação de um tributo como
direto ou indireto e ponto pacífico da Jurisprudência do STJ (REsp 118.488).
Desta
feita, a relação jurídico-tributária entre contribuintes de fato e de direito é
intrínseco às operações que envolvem o
tributo indireto.
No
mesmo sentido, Sabbag (2011, p. 164), leciona sobre o tema o seguinte:
[...] os chamados impostos indiretos,
ou seja, tributos que comportam, por sua natureza, a transferência do
respectivo encargo financeiro, conforme dispõe o art. 166 do CTN. Trata-se de
gravames marcados pela repercussão
tributária, isto é, pela transferência do encargo tributário do realizador
do fato jurídico-tributário para o
consumidor final, adquirente do bem.
Ilustramos
ainda o entendimento desposado pelo STJ nos primórdios da discussão sobre
tributos diretos e indiretos, com grifos nossos:
TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. REPETIÇÃO DE
INDÉBITO. ICMS. TRIBUTO INDIRETO. TRANSFERÊNCIA DE ENCARGO FINANCEIRO AO
CONSUMIDOR FINAL. ART. 166, DO CTN. ILEGITIMIDADE ATIVA. 1. ICMS é de natureza
indireta, porquanto o contribuinte real é o consumidor da mercadoria objeto da
operação (contribuinte de fato) e a empresa (contribuinte de direito) repassa, no preço da mesma, o imposto
devido, recolhendo, após, aos cofres públicos o tributo já
pago
pelo consumidor de seus produtos. Não
assumindo, portanto, a carga tributária resultante dessa incidência. 2.
Ilegitimidade ativa da empresa em ver restituída a majoração de tributo que não
a onerou, por não haver comprovação de que a contribuinte assumiu o encargo sem
repasse no preço da mercadoria, como exigido no artigo 166 do Código Tributário
Nacional. Prova da repercussão. Precedentes. 3. Ausência de motivos suficientes
para a modificação do julgado. Manutenção da decisão agravada. 4. Agravo
Regimental desprovido. AgRg no REsp 440.300/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/11/2002, DJ 09/12/2002, p. 302)
Por
fim, para os que entendem que não existem palavras inúteis na lei, a redação
dos incisos, parágrafos e alíneas que se seguem ao Art. 155 da Constituição
Federal, não deixam dúvidas de que o ICMS
é cobrado nas operações anteriores, com grifos nossos, verbis:
Art. 155. [...]
§ 2.º O imposto previsto no inciso II
atenderá ao seguinte:
I - será não-cumulativo, compensando-se
o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou
prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro
Estado ou pelo Distrito Federal;
[...]
X - não incidirá:
a) sobre operações que destinem
mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no
exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas
operações e prestações anteriores; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
42, de 19.12.2003)
3.
CONCLUSÃO:
Pelo
exposto, diante toda evidência fática e jurídica de que o ICMS é cobrado do sujeito passivo que adquire bens para uso,
consumo, transformação ou revenda; não só por se tratar de um tributo indireto,
mas no caso concreto pela simples, mas cabal demonstração do tratamento
contábil dispensado ao mesmo, cuja respectiva ciência o separa e o classifica
como um direito da entidade com
registro no ativo circulante, não há
como concordar com a conclusão assentada no r. e criticado acórdão.
Nesse
se constata que o seu ilustre relator durante todo o seu voto tratou o ICMS como um tributo de
repercussão DIRETA, o que, por óbvio, acabou por conduzir seu voto ao
equivoco de que: “o empresário não cobra do consumidor
final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o
ônus, assim como também é repassado todos os dispêndios do custo operacional da
bem, a exemplo da folha de salários, insumos, matéria-prima, etc”.
Nessa
senda, entendemos que a conduta de deixar
de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado,
na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres
públicos, trata-se de conduta típica, que só pode ser ilidida
mediante a ausência de dolo, elemento subjetivo essencial ao tipo.
_____________________
BIBLIOGRAFIA:
ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado - 5.
ad. - Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.
SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário – 3. ed. –
São Paulo: Saraiva, 2011.
[1] [... deixar de recolher, no
prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado,
na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres
públicos...]