Maria Lucia Fattorelli[i]
Está
anunciado para o próximo dia 14 de agosto de 2018, o “pregão” para a escolha de
instituição que pretende viabilizar a implantação de esquema que desvia recursos arrecadados de contribuintes durante o
seu percurso pela rede bancária; gera dívida
pública ilegal, comprometendo gerações atuais e futuras e, ainda por cima, provoca prejuízos e impõe elevadíssimos
custos para o Estado.
O Edital
(disponível em https://goo.gl/BKPGMz),
apesar de graves omissões, resume os termos da contratação da instituição a ser
escolhida para estruturar a operação de emissão de papéis financeiros
(debêntures) pela empresa Goiás Participações S/A, estatal criada para operar
esse esquema, denominado Securitização de Créditos.
No anexo “Termo de Referência” o referido Edital
menciona o custo estimado das taxas que
o Estado de Goiás se obriga a pagar à instituição a ser contratada. O valor
estimado inicialmente é de R$ 325.532.926,33, sendo: R$ 21.969.890,64
referente à Taxa de Estruturação; R$
45.000.000,00 à Taxa de Distribuição; R$ 184.547.081,39 à Taxa de
Administração; R$ 74.015.954,30 à Taxa de Performance! Além dessas taxas, ainda
haverá outros ônus, tais como “Prêmio de Performance”, atualização monetária,
garantias e indenizações.
O que justificaria esse exorbitante custo superior a
R$ 325 milhões?
Falsa propaganda
tem pregado que aqueles créditos podres, que o Estado não consegue arrecadar,
passariam a ser recuperados por esse esquema, porém, o próprio Edital não deixa
a menor dúvida de que o que está sendo cedido não serão aqueles créditos podres,
mas sim o fluxo da arrecadação de
créditos tributários líquidos e certos, podendo outros créditos
administrativos também fazer parte desta cessão.
Em outras
palavras: o Estado continuará com a responsabilidade de administrar a cobrança do crédito tributário, exercendo
todas as atribuições de fiscalização e cobrança, como consta do Edital:
III
– Todos os atos e procedimentos de cobrança dos créditos inadimplidos do Estado
de Goiás permanecem sob a exclusiva responsabilidade dos órgãos da
Administração Estadual, em especial da Procuradoria Geral do Estado – PGE e da
Secretaria de Estado da Fazenda.
Porém, quando o
recurso for efetivamente arrecadado de contribuintes, em vez de ser destinado diretamente aos cofres
públicos, como determina a legislação, será desviado e sequestrado durante o
seu percurso pela rede bancária. Em vez de chegar aos cofres públicos, recursos já arrecadados serão transferidos diretamente para
investidores privilegiados que adquirirem os tais papéis financeiros emitidos
pela Goiás Participações S/A, como mostra o diagrama a seguir:
Tal
operação é flagrantemente inconstitucional, pois toda a legislação de finanças
do país é regida com base no princípio orçamentário, ou seja, todas as receitas (tributárias, financeiras, patrimoniais, comerciais etc.) devem obrigatoriamente chegar ao orçamento público e, deste, só
podem ser destinadas com base na lei orçamentária (LOA) aprovada pelo poder
legislativo correspondente (federal, estadual, distrital ou municipal).
No
presente caso, toda a legislação de finanças
do país é explicitamente ignorada, na medida em que o Edital menciona
expressamente que “A remuneração da contratada será realizada por êxito,
conforme descrição no Termo de Referência, motivo pelo qual não são indicados
os recursos orçamentários.”
É
inacreditável! O pagamento das remunerações será feito
por fora do orçamento, com
recursos do fluxo
de arrecadação desviados.
Trecho do Edital, na parte que trata da Taxa de
Administração explicita esse desvio:
A Taxa de Administração será
aplicada sobre o valor dos créditos
inadimplidos representando o valor a ser pago pelo Serviço de administração que constitui o
acompanhamento/administração do estoque e
fluxo financeiro lastreado da Emissão do Modelo Securitizador de Créditos
escolhido, Conforme definido na Licitação. Esta remuneração será devida mensalmente e
será suportada com os recursos decorrentes da administração e recebimento dos
créditos cedidos para o Modelo
Securitizador.
O
Edital contém diversas e graves omissões,
por exemplo:
· O “Modelo Securitizador” não vem detalhado
no Edital;
· O
Edital menciona que o referido “Modelo Securitizador” deveria vir definido na “Licitação” (com letra maiúscula), mas
tal documento também não foi divulgado;
·
O “instrumento
convocatório”, onde estarão as “cláusulas
avençadas” a serem cumpridas pelo Estado de Goiás também não faz parte do
Edital publicado.
Ademais, o
Edital contém verdadeiras “pegadinhas” que podem enganar a muitos desavisados.
No
trecho que diz “II – O Estado de Goiás
não é garantidor dos ativos
securitizados”, cabe ressaltar que “ativos securitizados” são os
créditos tributários devidos por contribuintes que, logicamente, caso não
cumpram o seu pagamento, continuarão devendo ao Estado e este não irá garantir
tal pagamento.
Por
outro lado, nos termos do Edital, o
Estado de Goiás é garantidor
dos ativos (debêntures sênior) a serem emitidos pela Goiás Participações
S/A, e tal garantia é real e antecipada, na medida em que o Estado cede
prioritariamente o fluxo da arrecadação
tributária, como já ilustrado!
Também
no trecho “I - Não assunção, pelo Estado
de Goiás, de qualquer compromisso financeiro para com terceiro”, a “pegadinha” está no termo “para com
terceiro” que sequer faz parte do contrato. Chega a ser ridículo! O compromisso
do Estado é com as partes do contrato.
O compromisso
financeiro do Estado, de garantir a operação e ceder o fluxo da arrecadação,
inclusive obrigação de indenização, está expresso no Edital:
Tabela
01: Termos e Condições Gerais
...
Cedente dos Ativos:
Estado de Goiás
...
Ativo
Lastro:
Cessão de fluxo financeiro
correspondente à cobrança de direitos creditórios originários de
créditos inadimplidos, tributários e não
tributários, parcelados ou não, em fase administrativa ou judicial,
relacionados ao ICMS, IPVA e ITCMD, às
taxas de qualquer espécie ou origem, as multas administrativas de natureza não
tributaria, as multas contratuais, aos ressarcimentos e às restituições e indenizações.
Os papéis financeiros
emitidos pela Goiás Participações S/A serão de
pelo menos 2 tipos:
Ø SÊNIOR: DEBÊNTURES COM GARANTIA REAL, que são vendidas a
investidores privilegiados e, nos demais entes federados onde o esquema está funcionando, pagam juros elevadíssimos.
A garantia é dada pelo Estado, mediante a entrega do fluxo da arrecadação.
Ø SUBORDINADAS: DEBÊNTURES SIMPLES, emitidas no mesmo volume dos
créditos cujo fluxo será cedido. São entregues para o ente federado, em troca
da cessão do fluxo da arrecadação tributária. Servem para
documentar a garantia pública concedida pelo Estado para as debêntures
sênior, porém, em volume muito maior que o valor destas!
O Edital do
“pregão” menciona explicitamente a obtenção de recursos junto ao mercado financeiro,
ou seja, contratação de operação de crédito:
“A colocação no mercado financeiro dos Ativos
de natureza sênior (distribuição) para
fins de geração de recursos, dentro dos termos e regras definidos na
Instrução da Comissão de Valores Mobiliários – CVM nº 476 e modificações subsequentes.”
Essa
geração de recursos corresponde à contratação disfarçada de dívida pública. A
empresa estatal (Goiás Participações S/A) funcionará como mera fachada para a obtenção de recursos junto ao mercado
financeiro, a um custo escandaloso, pois além dos juros elevadíssimos, o Estado
perde o controle sobre o fluxo da arrecadação transferido!
A
Goiás Participações S/A irá emitir papéis financeiros (debêntures sênior), os
quais serão vendidos a algum investidor privilegiado, únicos que têm acesso a
emissão “com esforços restritos” de que trata a Instrução CVM no 476. Os
recursos gerados com essa colocação de debêntures no mercado serão pagos à
empresa Goiás Participações S/A, criada para operar o esquema, mas esta fica
com apenas uma parte dos recursos gerados e repassa a maior parte ao ente
federado, como mostra o diagrama a
seguir:
No
caso de Belo Horizonte o banco BTG Pactual S/A, que foi o coordenador líder da
operação de lançamento das debêntures, comprou a totalidade desses papéis (que
pagam juros equivalentes a IPCA + 11%) por R$ 230 milhões. A empresa PBH
Ativos S/A ficou com R$ 30 milhões e
repassou R$ 200 milhões para
o município de Belo Horizonte. O mecanismo foi uma mera
fachada para o município obter esses R$ 200 milhões no mercado. Como esse
empréstimo não é contabilizado como dívida, o seu pagamento se dá por fora, com
aqueles recursos desviados ainda na rede bancária;
O
presidente da PBH Ativos S/A que emitiu as debêntures em 2014 foi Edson Reinaldo Nascimento, a mesma pessoa que agora
assessora o Estado de Goiás, conforme Portaria Intersecretarial nº 11 – PREVCOM/2018-PGE.
Diversas
ilegalidades embutidas nessas operações ferem a Constituição Federal, o Código
Tributário Nacional, a Lei de Responsabilidade Fiscal e toda a legislação de finanças do país. Por i so, graves questionamentos por parte de órgãos de controle federais, como o Tribunal
de Contas da União e o Ministério Público de Contas, e estaduais, como o
Tribunal de Contas dos Estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco,
Paraná, Rio Grande do Sul têm sido levantados (Ver ALERTA CONTRA O PLP
459/2017, disponível em https://goo.gl/sS5YY4).
Recentemente,
o Tribunal de Contas do Estado do Paraná proibiu definitivamente a operação da
empresa PRSec (empresa criada nos mesmos moldes da Goiás Participações S/A, PBH
Ativos S/A, CPSEC S/A entre outras), conforme decisão completa disponível em https://goo.gl/VXPc1D
De acordo com o Edital do “pregão”, as debêntures
sêniores emitidas pela Goiás Participações S/A não serão registradas na CVM, o
que fere frontalmente a Lei no 6.385/76. Isto porque o referido Edital menciona
como base legal para a emissão das debêntures a Instrução CVM no 476, a qual
exime a própria Comissão de cumprir a Lei
nº 6.385/76, senão vejamos:
Ø O caput do art. 19 da Lei nº6.385/76
diz:
Art. 19. Nenhuma
emissão pública de valores mobiliários será distribuída no mercado sem
prévio registro na Comissão.
Ø
O art. 6º da Instrução
CVM º 476/2009 diz:
Art. 6º As ofertas públicas
distribuídas com esforços restritos estão
automaticamente dispensadas do registro de distribuição de que trata o
caput do art. 19 da Lei no 6.385, de 1976.
Como é possível
que a própria Comissão (CVM) que a Lei 6.385/76 determina que faça o registro prévio se exima de cumprir a
referida lei? O texto do Art. 19 da referida lei não abre exceção alguma à
necessidade de registro dos papéis financeiros de emissão pública, no entanto,
a CVM criou uma exceção “automática” para o caso de emissão pública “com
esforços restritos”. E o que significa esforços restritos? Não há qualquer propaganda,
de tal forma que somente poucos privilegiados tomam conhecimento da referida
oferta e, ademais, apenas grandes operadores do mercado financeiro terão acesso
a esse tipo de operação endereçada a privilegiados!
Outra
ilegalidade flagrante é a própria modalidade do “pregão eletrônico” para a
escolha da instituição que pretende fazer a estruturação das debêntures a serem
emitidas pela empresa estatal Goiás Participações S/A.
A Lei no 8.666/93,
que regulamenta as licitações no Brasil, não trata da modalidade de pregão
eletrônico. Tal modalidade surgiu com a Medida Provisória no 2.026/2000,
reeditada sob o no
2.182/2001 e transformada em Lei no 10.520/2002. O Decreto no 3.555/2000
continha 2 anexos, que regulamentavam essa modalidade de pregão e trazia lista de bens e serviços comuns.
Apesar de
revogado o detalhamento dos “bens e serviços comuns” pelo Decreto nº 7.174/2010, o
art. 5º. do Decreto nº 3.555/2000, que continua em vigor, regulamentou essa espécie de
pregão e estabeleceu que tal espécie não pode ser utilizada para “alienações em
geral”. No caso em exame, o Estado de Goiás aliena o fluxo da arrecadação
tributária, segundo os “Termos e Condições” constante do Edital.
No caso idêntico
analisado em Belo Horizonte, onde uma CPI foi instalada na Câmara Municipal
para investigar as operações da PBH Ativos S/A (idêntica à Goiás Participações
S/A), a referida “cessão do fluxo financeiro” foi formalizada em contrato
de cessão fiduciária dos créditos, mediante o qual o município de
Belo Horizonte transferiu a propriedade do fluxo de arrecadação em caráter
irrevogável e irretratável!
Caso
não tivesse sido implementado esse esquema em Belo Horizonte, o município teria R$ 70 milhões a mais em
caixa. Então, numa operação de R$
200 milhões, em apenas 3 anos, o município já teve perda comprovada de R$ 70
milhões, conforme dados oficiais analisados pela CPI da Câmara Municipal de
Belo Horizonte, que permitiu acesso a escrituras, documentos contábeis e
contratos da PBH Ativos S/A, cuja análise revelou que referida empresa é mero
veículo de passagem para confundir e dificultar a visualização das operações
ilegais e fraudulentas que envolvem o
desvio e sequestro de recursos públicos, além da perda de controle sobre a
arrecadação tributária e danos financeiros efetivos.
Relatório
apresentado pela Auditoria Cidadã da Dívida à CPI da PBH Ativos S/A, disponível
no link https://goo.gl/rAKGPa detalha a
operação e todas as citações do referido relatório encontram-se devidamente
fundamentadas em provas e documentos que comprovam o escândalo contido no
esquema financeiro semelhante ao que se pretende implementar em Goiás.
Diante do
exposto, é importante que todas as autoridades, entidades da sociedade civil e
todos os cidadãos e cidadãs tomem conhecimento da inconstitucionalidade
flagrante, ofensa a toda a legislação que rege as finanças em nosso país que a
operação anunciada no Edital para estruturar a operação de emissão de papéis
financeiros (debêntures) pela empresa estatal Goiás Participações S/A,
representa. Em poucas palavras,
representa o início de um crime contra o Estado de Goiás e seu povo que
ainda pode ser evitado!
[i]
Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida < www.auditoriacidada.org.br >
e <https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina>. Membro
da Comissão de Auditoria Oficial
da dívida Equatoriana, nomeada
pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no
Brasil (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada
Zoe Konstantopoulou para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia
(2015).