A sigla HNWI
representa em inglês o grupo chamado de high-net-worth individuals. São
indivíduos que possuem mais de 1 milhão de dólares em investimentos líquidos.
Naturalmente, os membros desse seleto grupo são cortejados por consultores,
instituições financeiras e escritórios de advocacia, ávidos por prestar
consultoria para reduzir a carga tributária sobre tais investimentos.
Acontece que fazer
planejamento tributário para um HNWI no
brasil, apesar de
perfeitamente legal, é injusto. Isso porque toda a legislação é feita para privilegiar quem detém patrimônio, em
detrimento daqueles cuja renda apenas se destina ao sustento e cumprimento das
obrigações mais básicas.
Já vimos que o
Brasil possui uma das cargas tributárias sobre renda, lucro e ganho de capital
mais baixas do mundo, ao mesmo tempo que sua carga sobre bens e serviços está
entre as maiores do planeta. Tal discrepância é a principal responsável pela
perpetuação da desigualdade, origem de todos os problemas sociais que o país
enfrenta.
A tributação é
a forma pela qual o Estado consegue transferir renda e patrimônio dos mais
ricos para os menos afortunados. No entanto, como implementar a transferência
se os mais ricos estão blindados pela legislação em vigor, construída em causa
própria?
Para enfrentar
o problema da desigualdade é urgente adequar a carga tributária brasileira à de
outros países. Isso significa aumentar consideravelmente a tributação sobre
lucros, renda e ganho de capital, para conseguir reduzir, também de maneira
expressiva, a tributação sobre os bens e serviços que são utilizados por toda a
população.
Fonte: Relatório “Carga Tributária no Brasil 2017 |
Sem entrar em
pormenores a respeito do tributo e da entidade política responsável pela
arrecadação, a ideia pode ser ilustrada de forma simples, por meio de um
exemplo baseado em estimativas reais: a carga tributária sobre a energia
elétrica e serviços de telecomunicações
no brasil é de aproximadamente 40% sobre o preço do produto e serviço.
Ao mesmo tempo, a tributação paga pelos indivíduos sobre os dividendos recebidos
de empresas é de 0%. Acontece que nem
todo brasileiro detém participação em empresas, ao passo que todo cidadão, direta ou indiretamente, consome energia elétrica e serviços
de telecomunicações. Ou seja, uma
redução na tributação sobre tais produtos
e serviços, compensada por um aumento
na tributação sobre dividendos, claramente beneficiaria toda a sociedade.
Fonte: Relatório “Carga Tributária no Brasil 2017 |
A tributação
sobre dividendos é usada, de modo habitual, para exemplificar a injustiça
tributária no país, mas existem inúmeras outras situações previstas na
legislação, feitas não só para manter o patrimônio dos mais ricos, mas para acentuar
a desigualdade social independentemente do período por qual passe a economia nacional.
Nada justifica
que a propriedade de uma Brasília amarela seja sujeita ao pagamento de um
imposto sobre patrimônio, enquanto o proprietário de um barco ou avião não
precise pagar imposto algum sobre o bem; que um presidente de empresa que
aufira mais de 1 milhão de reais em salários por ano pague exatamente a mesma
alíquota de imposto de renda que seu empregado que recebe 5 mil reais por mês;
que a herança sofra uma tributação que não excede 8%, perpetuando eternamente o
patrimônio na mão das mesmas famílias; que o investidor estrangeiro consiga
auferir rendimentos e ganhos de capital no mercado brasileiro sem qualquer
tributação; que empresas de serviços e mercadorias com faturamento de até 78
milhões de reais consigam remunerar seus sócios, que muitas vezes desenvolvem o
trabalho pessoalmente, com carga tributária total (carga da pessoa jurídica e
da pessoa física) que não chega a 20%, enquanto
os empregados das mesmas empresas, que naturalmente recebem muito menos que
seus sócios, paguem imposto de renda superior; que incentivos fiscais sejam
concedidos sem qualquer preocupação de que a redução da carga tributária chegue
ao consumidor final. Enfim, os exemplos são incontáveis e apenas ilustram um
arcabouço jurídico cuja matriz ideológica
é a perpetuação da exploração dos mais pobres pelos mais ricos.
Divisa da favela de Paraisópolis e do Bairro Morumbi (SP) |
Uma vez feitas
tais constatações, é possível concluir que o enfrentamento da desigualdade e,
consequentemente, dos maiores problemas do Brasil não é uma tarefa impossível,
nem um trabalho para gerações. E, tampouco, deveria ser um projeto político “de
esquerda”. A nossa legislação é tão perversa, a carga tributária, tão mal
alocada, que bastará nos adequarmos a modelos já experimentados em outros
países para darmos um salto enorme e imediato na busca por um país mais justo.
Para
atingirmos tal objetivo é essencial que todos pensem no coletivo, pois o
crescimento do grupo fará todos os indivíduos terem uma vida mais aprazível,
menos custosa. Menos gastos com segurança, saúde e escolas privadas. Mais
economia nas compras no mercado, nas contas de energia, telefone, gás e água.
Independentemente
da formação profissional, todos podem participar dessa transformação para uma
sociedade mais justa, mas o profissional do direito tributário tem as condições
de ser um poderoso agente de mudança ao se questionar sempre se a tributação
que busca para seu cliente, além de legal, é justa.
Posfácio extraído do livro: Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa(2019), de Eduardo Moreira.Por: Márcio Calvet Neves. advogado, mestre em direito tributário pela Georgetown University; especialista em direito da economia pela fundação Getúlio Vargas e mestrando em ciência política pela universidade federal fluminense.