Sob a justificativa da
desburocratização, a nova sistemática de fiscalização e cobrança do imposto
causa mortis goiano, o ITCD, deu ao estado a faculdade de decidir, caso a caso,
qual a modalidade de lançamento tributário mais conveniente a ser aplicada para
o mesmo fato gerador em uma mesma circunstância.
O “modus operandi” do novo ITCD,
permite que algoritmos separem em duas partes contribuintes que se encontram em
situação tributária absolutamente idêntica, possibilitando que uma parte desses
contribuintes recolha o tributo de forma “quase” automática, submetendo a parte
restante a um tratamento fiscal mais rigoroso. Nesse caso, pelo simples fato do
valor declarado como base de cálculo ultrapassar determinado teto que a administração
tributária considera interessante (falam em R$ 800 mil). Esse é o critério que
será preponderantemente utilizado nas malhas fiscais, que foca em conteúdo
econômico e não em irregularidades.
A nova sistemática do ITCD goiano
também vai provocar um efeito curioso, pois, em tese, com duas modalidades de lançamentos possíveis, o estado de Goiás passa a ter dois prazos decadenciais
para o ITCD. Difícil vai ser decidir
qual dos prazos aplicar, uma vez que nem mesmo as autoridades fiscais do estado
sabem, ao certo, a atual modalidade de lançamento do ITCD, se por declaração ou
por homologação.
Assim, pluralidade de lançamentos,
tratamento anti-isonômico e insegurança jurídica, não são formas de “desburocratizar”
tributos. Desburocratizar não significa dar solução cômoda, rápida e inócua
para os problemas difíceis.
O problema do ITCD em Goiás, como tantos outros, ainda é a falta de investimentos.Hoje, a estrutura física e humana disponível é incompatível com uma
autêntica sistemática de lançamento por declaração. Aliás, é insuficiente até
mesmo para manter essa nova sistemática “jaboticaba sabor pequi”, que alterna o
lançamento por homologação com o por declaração, conforme conveniência da administração.
Não é a primeira vez que a gestão da
pasta fazendária tenta agir de forma criativa, enquadrando a realidade em sua
possibilidade, quando o correto seria o contrário.
Escolher a modalidade de lançamento
do respectivo tributo é um direito da administração fazendária, mas no caso de
Goiás faltou coragem à pasta da Economia em adotar a única modalidade de
lançamento tributário viável ante as severas limitações materiais e humanas da
máquina fazendária, que inexoravelmente acabam por repercutir no contribuinte.
Estou falando do lançamento por homologação,
que dispensa qualquer participação da autoridade fiscal na constituição do
crédito, cujo cálculo e pagamento fica inteiramente sob a responsabilidade do
contribuinte, sem qualquer intervenção do fisco, que só pode agir caso
identifique omissões após o prazo de pagamento do tributo, ou seja, nessa
modalidade de lançamento não cabe o termo “quase”.
Para ter ideia da viabilidade do lançamento por homologação, na maior fazenda
pública estadual do país, São Paulo, o imposto causa mortis é lançado nessa modalidade. Pode
não ser a melhor forma de lançamento
para o fisco, mas para a maioria dos estados é a modalidade possível e a mais justa e honesta
para o contribuinte.
Ao introduzir o pagamento do ITCD “quase”
automático, terminamos por “quase” desburocratizar esse tributo. Tenhamos
coragem de fazer o que está ao nosso alcance, de forma correta e honesta com o
contribuinte.
O Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores
– IPVA administrado pelo Estado de Goiás encontrava dificuldades na cobrança de
sua inadimplência em razão dos altos custos de postagem para notificação do respectivo
lançamento (auto de infração). Essa situação era agravada pelo grande número de
endereços desatualizados nos cadastros de proprietários de veículos a cargo do
DETRAN, ocasionando a devolução de parte considerável das notificações enviadas
pelos correios.
Para superar essa dificuldade a pasta da Economia
aviou projeto legislativo que redundou em janeiro passado na promulgação da Lei
n. 20.752/2020, que dentre outras providências, operou espécie de “desburocratização”
no lançamento do IPVA e de sua multa por inadimplência, através de alterações
no Código Tributário Estadual e na lei que rege o Processo Administrativo
Tributário, possibilitando a inscrição do contribuinte de maneira mais célere
em razão do atraso no pagamento do referido imposto.
Segundo a exposição de motivos que acompanhou o
referido projeto de lei, a alteração legislativa possuiu arrimo na Súmula 436 e
no Tema 903, ambos do Superior Tribunal de Justiça. Assim, o lançamento do IPVA
passou a ser formalizado no início de cada ano com a publicação em Diário
Oficial do respectivo calendário de pagamento juntamente com as alíquotas
aplicáveis e o valor médio (base de cálculo) dos veículos sujeitos à
tributação.
A pasta fazendária também anunciou que a multa
punitiva no percentual de 50% sobre o valor do IPVA devido passaria a ser de
Forma automática e aplicada a partir do dia seguinte ao do vencimento,
pois a autuação dos impontuais não mais seria realizada pela Secretaria da
Economia.
Porém, num exame mais acurado das alterações que
tornaram mais rápida a cobrança do IPVA, constatou-se que a pasta fazendária
eliminou o auto de infração, que é o procedimento administrativo indispensável ao lançamento da penalidade
pecuniária, mantendo, todavia, o caráter punitivo da impontualidade fiscal
através de uma dissimulada pena pecuniária que possui todas as características
de multa moratória, fixada no abusivo patamar de 50%.
Com a marota adoção dessa multa punitiva automática com aplicação semelhante à multa moratória, a pasta fazendária
conseguiu eliminar também a indispensável participação da autoridade
administrativa na constituição do crédito tributário juntamente com o necessário
procedimento de lançamento da pena pecuniária, incluindo-se aí a eliminação
da notificação do contribuinte para apresentação de defesa em razão
da revisão de ofíciodo crédito do IPVAoriginalmente
lançado, que a partir da inadimplência vai ser modificado com o acréscimo instantâneo da multa
punitiva prevista na legislação tributária.
Ocorre que essa nova sistemática de lançamento e
cobrança de multa punitiva do IPVA malogra diversos preceitos tributários, retirando a legitimidade da multa aplicada e cobrada do contribuinte por pretensa
inadimplência. Com isso, também abre caminho para que o crédito seja questionado,
com boas chances de ser anulado na parte que impôs a penalidade espúria, em prejuízo
à arrecadação tributária e ao erário estadual.
Senão, vejamos.
De início, em nenhum momento a Lei n. 20.752/2020
autoriza a pasta fazendária aplicar instantaneamente (sem auto de infração)
a multa punitiva de 50% pela impontualidade no pagamento do IPVA, tampouco que
essa multa seja cobrada por órgão estranho ao da administração tributária, como
divulgado na imprensa.
A propósito, pretensa fiscalização ou lançamento de
crédito fiscal (tributo ou pena) por agente ou órgão diverso ao da
administração tributária é nulo de pleno direito, conforme preconiza a
legislação tributária, em especial o Código de Defesa do Contribuinte[1]
goiano.
É perceptível de plano que vai contra o ordenamento
vigente a interpretação da pasta fazendária no sentido de que a multa pode ser
lançada de forma instantânea e automatizada fora do ambiente fazendário, ou seja, sem a prévia análise da autoridade fiscal e constituída em órgão diferente da
Secretaria da Economia.
Também é perceptível a confusão que a pasta
fazendária fez ao arrimar a alteração legislativa efetivada pela Lei n.
20.752/2020 nos permissivos da Súmula 436[2]
e do Tema 903[3],
ambas do STJ.
Isso porque a Súmula 436/STJ foi editada pelo
Tribunal da Cidadania levando em conta unicamente os lançamentos realizados na
modalidade “por homologação” como no caso do ICMS. Inaplicável,
por tal, ao IPVA, cujo lançamento se dá na modalidade “de ofício” ou “direta”,
dispensando pretensa declaração ou qualquer outra providência por
parte do contribuinte para o lançamento do crédito tributário pela autoridade
fiscal.
Em relação ao Tema 903 da Corte Superior, esse diz
respeito tão somente a original expressão econômica do IPVA, assim considerada como
aquela prestação pecuniária compulsória descrita no art. 3º do CTN, com valor
expressado em moeda e que não constitua sanção de ato ilícito.
Diferentemente, pois, da multa punitiva do IPVA, cujo
fato gerador ocorre pelo descumprimento de um dever fiscal instrumental
acessório (art. 113, § 3º do CTN)[4],
ou seja, um ato ilícito. Dessarte, não obstante a natureza
tributária de ambas (imposto e multa), possuem fundamentos e finalidades claramente
distintas.
É justamente por conta da natureza lícita do
crédito original do IPVA, somado a sua característica de “imposto real”
que a jurisprudência (Tema 903-STJ) admitiu como válida a notificação do
respectivo lançamento original do pela via editalícia, em razão da notoriedade
da renovação de sua exigibilidade a cada ano.
Situação que não ocorre com a multa punitiva, uma
vez que o lançamento dessa espécie de crédito tributário (multa formal) possui caráter
personalíssimo, aliás a aplicação de multa punitiva, naturalmente oriunda
de ato ilícito, tem caráter pessoal.
Circunstâncias essas que afastam completamente
pretensa notificação editalícia do lançamento da pena pecuniária relativa à
inadimplência do IPVA, que só será legitima se lançada por meio do auto de
infração lavrado pela autoridade competente, seguida da notificação pessoal do
contribuinte autuado.
A regular notificação do contribuinte é condição de
validade da multa punitiva isolada aplicada de ofício pelo ato ilícito
verificado posteriormente ao lançamento do tributo.
Trata-se de providência que aperfeiçoa a revisão do
lançamento originalmente feito, demarcando a existência da pena aplicada, que
passa a ser exigível juntamente com o tributo original caso mantenha-se intacta
após decorridos os prazos dedicados à defesa do contribuinte.
Indiscutível então que a validade do lançamento da multa
isolada depende da regular notificação (pessoal) do contribuinte. Admitir o
contrário seria o mesmo que admitir a eficácia de uma lei sancionada (lançada)
e não publicada (notificada).
Nesse contexto, de qualquer lado que se analise a
multa de 50% relativa ao IPVA constante na Lei n. 20.752/20, se moratória
ou punitiva, todos eles levam à incongruência de sua constituição
e cobrança. De um lado porque a multa moratória - apesar de dispensar o
lançamento (auto de infração) e sua notificação - não pode ultrapassar o
patamar de 20% sob pena de confisco, segundo entendimento consolidado
do STF.
Doutro
lado, a multa punitiva, de acordo também com o STF, pode chegar até 100% do crédito
tributário originalmente devido sem ser considerada confiscatória, porém não
pode ser automática como a multa moratória, devendo obrigatoriamente
ser lançada por autoridade fiscal através do auto de infração e submetida
a nova notificação do contribuinte para o exercício de defesa, caso
queira impugnar a revisão do lançamento que acresceu ao crédito original a pena
pecuniária pelo pretenso ilícito omissivo de deixar de recolher tributo no
prazo legal.
É exatamente essa a característica da pena de 50% atualmente
prevista na legislação para a inadimplência do IPVA: a revisão do lançamento original
em razão da verificação de uma omissão que dá ensejo a uma penalidade, conforme
se extrai da conjugação do art. 145, III e art. 149, VI do CTN[5].
Assim, o procedimento anunciado pela pasta fazendária
de lançar e cobrar instantaneamente a pena no valor de 50% do valor do tributo pelo
inadimplemento do IPVA originalmente lançado consegue reunir várias violações aos limites do poder de tributar, tanto ela seja tratada como de caráter punitivo-fiscal, quanto seja considerada de caráter moratório-civil.
Tal situação não pode continuar.
Só existem dois caminhos a
serem tomados para corrigir a noticiada incongruência no lançamento e cobrança
do IPVA pela Secretaria da Economia. O primeiro dar-se-ia com a eliminação
total da multa punitiva pela inadimplência do IPVA, mantendo-se apenas uma
multa de caráter moratório no patamar máximo de 20% pro rata die, com a
consequente dispensa de notificação do contribuinte em razão do caráter civil
da multa em questão.
O segundo caminho seria no
sentido de se manter a multa punitiva pelo ilícito fiscal de inadimplência do
IPVA,porém lançando-a com estrita
observância ao CTN, ou seja, com a lavratura de auto de infração por autoridade
competente vinculada à pasta fazendária, seguida da notificação pessoal do contribuinte
para, caso queira, defenda-se da revisão do lançamento procedida.
A sociedade moderna reservou
ao direito tributário a tarefa de firmar os preceitos democráticos e
necessários para obrigar seu cidadão recolher tributos ao respectivo Estado. A
cobrança e o pagamento compulsório de tributos são circunstâncias normais em qualquer
estado democrático de direito. Porém não basta que tais circunstâncias sejam
legais, também indispensável que sejam legítimas.
Os dois caminhos propostos
acima devolvem a legitimidade ao lançamento e a cobrança da multa punitiva relativa ao atraso do IPVA no Estado de
Goiás.
Está fácil resolver, basta que a Administração
Tributária faça a sua parte.
[1]LC n. 104/2013 – “Art. 36. São nulos ou inválidos os atos e procedimentos de fiscalização praticados com: [...] I - incompetência do órgão ou agente, que não poderá, sob nenhuma hipótese, ser objeto de posterior convalidação;
[2] Súmula 436/STJ- “A entrega de declaração pelo contribuinte, reconhecendo o débito fiscal, constitui o crédito tributário, dispensada qualquer providencia por parte do Fisco”
[3] Tema 903/STJ – Tese firmada: “A notificação do contribuinte para o recolhimento do IPVA perfectibiliza a constituição definitiva do crédito tributário, iniciando-se o prazo prescricional para a execução fiscal no dia seguinte à data estipulada para o vencimento da exação”.
[4] Código Tributário Nacional – CTN – “Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. [...] § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária”.
[5] Código tributário Nacional - CTN - "Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de: [...] III - iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no artigo 149. [...] Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: [...] VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária;