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  • Por que protegemos um sistema que nos fere?

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quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O mecanismo da renúncia fiscal


Chama a atenção o fato de perto de 80% da renúncia fiscal de Goiás ser usufruída por cerca de uma dúzia de grandes indústrias. Não à toa que a maioria delas possuem carga tributária efetiva de ICMS próxima a 1%, como tem revelado a CPI em curso na Assembleia Legislativa.
Apesar do peso irrisório do ICMS suportado por essas poucas e grandes empresas, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG), Sandro Mabel, em protesto pela recusa de seu depoimento na CPI dos incentivos fiscais, disparou que essas corporações rumaram a Goiás para não pagar “nenhum centavo de imposto”, pois propulsoras do crescimento econômico estadual.
A declaração do presidente da classe industrial goiana omite um fato pouco conhecido do público não especializado, a minúscula carga do ICMS sobre grandes corporações não é o cerne da questão que envolve os incentivos fiscais. Poder-se-ia até conceder a completa isenção do imposto estadual, mas quem conhece os meandros dos incentivos fiscais sabe muito bem que seria um péssimo negócio para elas, pois a isenção pura e simples inviabilizaria o principal objetivo que buscam na renúncia goiana: a transferências de créditos fiscais sem custo algum.
A galinha dos ovos de ouro dos incentivos fiscais do ICMS para grandes indústrias - e o verdadeiro combustível que alimenta a guerra fiscal - não é o privilégio das grandes usufruírem de uma carga tributária irrisória, mas sim a possibilidade de transferirem cerca de 11% em créditos fiscais que chegam ao destino sem nenhum liame financeiro anterior, em claro escracho ao princípio da não cumulatividade.
O intrigante é que parte considerável desses créditos “zumbis” do ICMS, em boa parte, são remetidos para coligadas, filiais e parcerias localizadas em grandes centros consumidores, que aproveitam até o último centavo do crédito transferido, com arrimo na garantia da não cumulatividade, curiosamente ignorada na etapa anterior.
Trata-se de um engenhoso mecanismo que só empresas estruturadas e bem assessoradas conseguem operar com razoabilidade, digerindo e processando muito mais que o simples incentivo concedido, pois possibilita também a produção de créditos fiscais espúrios com liquidez praticamente imediata, que são utilizados gratuitamente pelos empreendimentos parceiros destinatários das mercadorias.
É justamente a possibilidade de praticar essa engenharia fiscal que move as maiores indústrias para fora dos grandes centros de consumo, ante a possibilidade de transferência de créditos volumosos e gratuitos a suas coligadas que nos grandes centros permanecem instaladas. Reduzir o ICMS na industrialização que realizam dentro do Estado incentivador é apenas a parte primária dessa engenharia.
Assim, os créditos fiscais do ICMS produzidos pelo mecanismo são assemelhados à emissão de moeda sem lastro, algo muito próximo da fabricação de dinheiro. Daí essa forma de subsídio fiscal ser veementemente repelida, tanto pelos estados onde estão localizados esses grandes centros de consumo, quanto os mais renomados institutos de estudos econômicos do país.
Daí ser duvidosa a alegação de que essas grandes indústrias voltariam para as regiões sul e sudeste caso houvesse diminuição da renúncia aqui praticada, mesmo que a carga do ICMS de lá fosse menor (e não é), pois nesses grandes centros vige a regra geral de que só pode ser aproveitado pelo adquirente da mercadoria o ICMS efetivamente pago na etapa anterior, fora o fato de a alíquota interestadual de lá ser de 7% contra os 12% daqui. São circunstâncias que inviabilizam o funcionamento do mecanismo.
Desse modo, somente os estados localizados fora no eixo sul/sudeste poderiam representar alguma ameaça para Goiás na atração e transferência dessas grandes indústrias, mas não em virtude de uma eventual redução da renúncia fiscal goiana, que fora o Amazonas é 2 vezes maior, no mínimo, do que qualquer um dos Estados localizados nas regiões Norte, Centro-oeste e Nordeste.
Goiás poderia ficar a mercê desses estados por conta dos fracos investimentos públicos que fez nas últimas décadas em pilares de competitividade empresarial, em especial os relativos ao seu capital humano (educação), infraestrutura e inovação; cujos indicadores estão entre os piores do país.
 
Goiás equivocou-se em apostar na sua competitividade arrimada quase que exclusivamente em incentivos e benefícios fiscais, e com isso negligenciou investimentos públicos necessários para ser sustentavelmente competitivo. Resultado: dentre os estados brasileiros é o 2º maior em renúncia fiscal e o 10º em competitividade. Os números são implacáveis na demonstração desse equívoco. 
Insistir nas distorções de nossa política de incentivos fiscais é manter um mecanismo deletério em detrimento da formação e manutenção de um Estado verdadeiramente competitivo, no modo e forma recomendada por renomados organismos econômicos como a OCDE, FGV, FMI, Fórum Econômico Mundial, Banco Mundial e CIAT.
Pesquisas e relatórios desses organismos demonstram claramente que Goiás, com sua atual política de incentivos e benefícios fiscais, está na contramão de quem busca sustentavelmente desenvolvimento, emprego, renda e competitividade empresarial.
O mecanismo precisa ser desmontado, pois efetivamente só transfere riqueza para o andar de cima, agravando ainda mais a desigualdade brasileira.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Economia lança DIVAT-e, sem cobrança de honorários


Focada na otimização, celeridade e segurança em procedimentos de inscrição em dívida ativa de créditos tributários e não tributários oriundos de outros órgãos e poderes de toda a administração pública, a pasta da Economia pôs em funcionamento o Sistema Eletrônico de Dívida - DIVAT-e, que, dentre outras funcionalidades, permite o envio eletrônico dos documentos de constituição do crédito público pelo próprio órgão interessado, que até então só tramitavam em papel.


O DIVAT-e permite que os créditos sejam lançados de forma descentralizada e automatizada por cada órgão ou Poder, ficando a pasta da Economia responsável pela homologação e inscrição do crédito em cobrança, registrando-o de forma centralizada no maior e mais completo banco de dados de devedores de créditos públicos do Estado.

Assim, os órgãos e poderes que aderirem ao DIVAT-e, a exemplo do TJ, TCE, DETRAN, TCM e JUCEG; terão os respectivos créditos cobrados administrativamente com a expertise dos servidores da Administração Fazendária, sem que isso acresça ônus extra ao cidadão. 

Um Estado, quatro dívidas ativas.


Recentemente a dívida ativa do estado foi dividida em quatro. Antes, concentrada apenas na pasta fazendária, passou a contar também com a dívida ativa do DETRAN, SECIMA e do PROCON Estadual.

A separação dos cadastros de dívida ativa foi fundamental para que a PGE conseguisse implementar os encargos legais na cobrança administrativa de créditos não tributários, que onera em mais 10% o contribuinte devedor, cujo valor arrecadado serve para remunerar os servidores envolvidos na cobrança, dentre eles os próprios procuradores.

Os encargos legais também foram propostos à Administração Tributária, que se recusou a implementá-los na cobrança administrativa dos créditos tributários que estão sob sua responsabilidade.

O Fisco entende que além de ser moralmente questionável onerar o cidadão com espécie de honorários em cobranças de dívidas não ajuizadas, para depois repartir o fruto da arrecadação com os servidores envolvidos na cobrança, tal oneração acaba, inexoravelmente, dificultando ainda mais o recebimento da dívida, já que o crédito a recuperar fica automaticamente 10% maior sem motivo plausível.

Outro ponto que os servidores do Fisco entendem dificultar a recuperação de créditos e ferir o interesse público é a repartição da dívida ativa estadual entre cadastros distintos de órgãos da administração direta e indireta.

Isso porque só é possível o efetivo controle e identificação dos seus devedores se o Estado solicitar do seu cidadão contribuinte 4 certidões distintas, que a rigor referem-se ao mesmo ente público. O problema é que isso não ocorre.

Exemplo corriqueiro dessa circunstância é a posse de servidores públicos comissionados, cujo rol de exigência para a posse aponta apenas a apresentação de certidão negativa de dívida da pasta fazendária (Economia), fato que, em tese, permite a posse de comissionados devedores do PROCON, SECIMA e DETRAN.

Isso só está ocorrendo porque os motivos determinantes da separação da cobrança administrativa desses órgãos da pasta fazendária não foi objetivando a otimização da recuperação de créditos, mas sim a implementação dos 10% dos encargos legais. E caso surja alguma norma que passe a exigir dos comissionados a apresentação de 4 certidões de dívida para a sua posse, também será para conservar esses mesmos encargos.

Com o lançamento do DIVAT-e pela pasta da Economia espera-se que essas incongruências sejam rapidamente corrigidas, tornando una a dívida ativa estadual e eliminando o encargo de 10% que onera o cidadão e dificulta o recebimento da dívida, a não ser, claro, que a intenção seja outra que não a otimização da cobrança administrativa de créditos públicos.





segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Sigilo fiscal: STF declina competência ao STJ



Na tarde de sexta feira (11) o presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, negou o pedido de suspensão de segurança (SS 5319) protocolado pela representação judicial do Estado de Goiás em Brasília buscando suspender a liminar concedida pelo TJGO em mandado de segurança impetrado pelo SINDIFISCO/GO, que tornou sem efeito o  § 2º do art. 1º do Decreto n. 9.488/19, dispositivo esse que autorizava de forma automatizada, gratuita, ampla e irrestrita, a transferência dos dados do contribuinte goiano para a PGE.

A procuradora do Estado que assina a peça argumentou que a manutenção da liminar acarretaria em dano ao erário em face da cobrança judicial realizada pela PGE. Noticiou ainda um fantasioso quadro de caos na arrecadação estadual por conta do posicionamento do fisco contra a transferência do sigilo e que a titular da pasta, Cristiane Schmidt, teria concordado com a legalidade do decreto. Em nota oficial, a Secretaria da Economia desmentiu a procuradora.

As alegações da PGE de ilegitimidade e grave lesão à ordem pública não chegaram a ser conhecidas pelo presidente do STF, que negou seguimento ao recurso e declinou a competência do feito para o STJ. Assim,  continua válida a liminar concedida pelo desembargador do órgão especial do TJGO, Dr. Guilherme Gutemberg Isac Pinto. 

O argumento mais recorrente da PGE para avançar sobre o sigilo fiscal é que ela faz parte da Administração Tributária (fisco) e desenvolve um importante trabalho na recuperação judicial de créditos tributários. Outrossim, em artigo publicado pelo Valorizafisco no último dia 30/09, “Arrecadando falácias II”, ficou demonstrado que a PGE contribui com a arrecadação tributária estadual com apenas R$ 0,28 (vinte oito centavos) a cada R$ 1.000,00 (mil reais) arrecadados.

O artigo demonstra ainda que nos últimos 5 exercícios a PGE recuperou com esforço próprio R$ 22  milhões em tributos, porém faturou perto de R$ 36 milhões em honorários nas ações judiciais de cobrança tributária, revelando o patente interesse privado dos advogados públicos nessa modalidade de cobrança de créditos tributários.

Caiado visita a pasta da Economia 
No dia 5 de setembro passado o governador Ronaldo Caiado visitou a pasta da Economia onde se desculpou publicamente pela edição do Decreto n. 9.488/19. “Foi um erro”, disse em relação a autorização dada pelo decreto para PGE avançar sobre o sigilo fiscal de contribuintes goianos. 


domingo, 6 de outubro de 2019

Lendas urbanas tributárias


Complexo, injusto, ineficiente, ofensivo à competitividade, não transparente e juridicamente inseguro são alguns dos insultos repetidos como mantra para qualificar nosso sistema tributário. O diagnóstico é perfeito, mas as causas da doença muitas vezes se assentam em lendas urbanas, certificadas por renomados tributaristas, economistas e empresários.

      Vejamos algumas: 

1) “A elevada carga tributária (cerca de 34% do PIB) compromete a competitividade da economia brasileira.”

Nada mais falso. Não é a magnitude da carga tributária, mas a qualidade dos impostos e das administrações tributárias que ofende a competitividade da economia.

Carga tributária elevada incomoda e reduz a renda disponível, mas um modelo tributário neutro, infenso à cumulatividade, gerido por administrações tributárias conscientes dos efeitos perversos do custo de conformidade, onera de forma isonômica – qualquer que seja sua magnitude – a produção nacional e a importada.

E, nas vendas ao exterior, permite a desoneração plena do produto exportado, anulando o custo tributário interno no mercado internacional. As propostas de reforma em debate não objetivam a redução da carga tributária – o desastre fiscal do País não permite considerar essa hipótese –, mas sim a melhoria da qualidade do sistema.

2) “A Constituição de 1988, ao delegar aos Estados a competência para estabelecer as alíquotas internas do ICMS, abriu as portas da guerra fiscal.”

Outra lenda urbana. A munição da guerra fiscal não é a alíquota interna, é a interestadual, fixada por resolução do Senado.

Ademais, não se faz guerra com a redução de alíquota, que, quanto maior, mais octanagem terá do combustível da guerra: ela é o agente transmissor do benefício espúrio para o Estado destinatário da mercadoria, que suporta o peso financeiro da guerra.

As duas formas relevantes de promoção da guerra fiscal são: concessão irregular de créditos simbólicos de ICMS ao contribuinte beneficiado, que, sem pagar, ou pagando apenas parte do imposto, transfere integralmente o crédito do ICMS ao destinatário interestadual; e concessão de prazo absurdamente longo para o pagamento do ICMS incidente na operação interestadual, devolvido à vista ao destinatário.

Guerra fiscal existe desde o início dos anos 1970 (programa Fundap - Porto de Vitória é um exemplo), e a regra nacional para concessões de benefícios fiscais é a mesma desde janeiro de 1975: Lei Complementar Federal (LCF) 24/75.

    É a desobediência a essa regra (a LCF 160/2017 perdoou tais desobediências), e não a própria regra, que promove a guerra.

3) “A complexidade do ICMS decorre da existência de 27 diferentes legislações estaduais.”

Outra conclusão míope. Fosse o ICMS um bom Imposto sobre Valor Agregado (IVA) – sim, o ICMS é um IVA! – sem os garranchos da guerra fiscal e da substituição tributária (ST), a existência de 27 ou de 270 legislações em nada aumentaria a complexidade do modelo.

Cada contribuinte se submeteria unicamente à legislação de seu Estado e suas obrigações, principal e acessórias, se ateriam às fronteiras de seu Estado. Claro que cada uma das filiais de empresas multiestaduais teria de obedecer à legislação local, como o fazem seus concorrentes em cada Estado. 

Não é o número de legislações que promove a complexidade, mas o desvirtuamento do ICMS com a guerra fiscal e a ST, que transformaram o ICMS neste indecifrável enigma. E, claro, a absurda complexidade de cada uma das 27 legislações estaduais.

É importante que a reforma avance na busca de um sistema funcional, simples e neutro para substituir o modelo tributário da Constituição de 1988, que não foi o responsável pelo caos, mas sim a sua gestão irresponsável ao longo das décadas.


Clovis Panzarini
 Economista, sócio-diretor da CP consultores associados ltda, ex-coordenador tributário da fazenda do Estado de São Paulo

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

O gotejamento das usinas de álcool


Acompanhando a “luta” dos usineiros para manterem o espetacular benefício fiscal do álcool anidro, onde ricos empresários recebem do governo créditos de ICMS “de verdade” tendo por base um imposto que pagam “de mentira”, tive a oportunidade de presenciar, na prática, a mais autêntica aplicação da teoria do “trickle-down economics” ou teoria econômica do gotejamento, eleita pelos empresários como a principal retórica na defesa dessa benesse fiscal.

A essência da teoria do gotejamento reside na tese de que quanto maiores as exonerações, benefícios e incentivos fiscais concedidos pelo Estado aos ricos, mais riquezas vão ser geradas, e o excesso da prosperidade produzida pelos ricos acabaria escorrendo e gotejando nas camadas socialmente inferiores, alcançando os mais pobres.

Agarrados à tese do gotejamento os usineiros creditam à própria atividade empresarial qualquer incremento social ou econômico que tenha ocorrido na região que se encontram instalados, e que ali só se instalaram e ainda permanecem por conta dos incentivos fiscais que receberam e recebem do governo.

Sem dúvida, os ricos e seus lobistas vêm rindo há décadas por causa da facilidade de vender a teoria do “trickle-down economics” a um público mal informado e confiante, não obstante essa teoria ser veementemente rechaçada por respeitáveis organismos econômicos nacionais e internacionais, como Fórum Econômico Mundial, FGV, CIAT, OCDE, FMI e Banco Mundial, que enxergaram nessa teoria apenas um meio de fazer quem já é rico ficar mais rico ainda.

A lógica que repele o engodo do gotejamento econômico é simples de entender. A renúncia de receita em favor dos mais ricos reduz os investimentos públicos em educação, saúde, segurança e infraestrutura. Como o pobre não consegue, sem a ajuda do Estado, usufruir desses serviços essenciais, qualquer crescimento econômico advindo do “trickle-down” será capturado quase na totalidade pelos mais ricos, retroalimentando a desigualdade.

Um  exemplo real do engodo dessa teoria foi flagrado na declaração do representante dos usineiros em uma das sessões da CPI dos benefícios fiscais que ocorre na Assembleia Legislativa de Goiás, onde o representante do patronato exaltou o fato dos filhos do usineiro terem estudado no mesmo colégio que estudavam os filhos dos cortadores de cana, arrematando dizendo que depois do “segundo grau” cada aluno  seguiu o seu caminho, sendo os filhos do usineiro encaminhados para boas universidades, dentro e fora do Brasil. 

Já sobre o destino dos filhos dos operários após o término do ensino médio - se é que o concluíram - nada disse o representante das usinas. Infelizmente, suponho que não tiveram a mesma “sorte” dos filhos do patrão.

Também, pudera! O "trickle-down economics existe é para isso mesmo: manter o filho do usineiro como usineiro e o filho do cortador de cana como cortador de cana, e nos raros casos em que o filho do operário escapa desse cruel destino, é utilizado como justificativa da continuidade dessa máquina de desigualdade.